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quinta-feira, 24 de julho de 2008

A aplicação do Elenchos Socrático no Diálogo "Laques"


1.Introdução

Numa Palestra, ou Ginásio públicos
[1] de Atenas, acontece uma exibição de hoplomaquia[2] protagonizada por Estesilau, um renomado mestre desta disciplina. [3]

Lisímaco convida um grupo de amigos para assistir a exibição de Estesilau, dentre os quais estão, Melésias, amigo muito próximo com quem costuma tomar as refeições, Laques e Nícias. Faz o convite a pretexto de obter respostas quanto ao caráter educativo da hoplomaquia, informação esta que busca com a real finalidade de saber qual seria a melhor educação para aplicar aos seus filhos que estão adentrando a juventude, motivos estes que só revelará ao final da apresentação.
Tanto Lisímaco como Melésias, são filhos de homens de grandes prestígios. O pai de Lisímaco, Aristides, segundo nota do tradutor, embora fosse de família não muito abastada, participou das batalhas de Maratona e Salamina. Muito ativo nos assuntos políticos, foi rival de Temístocles. Ocupou também cargo de Arconte[4] e de Estratego[5]. Já o pai de Melésias, Tucídides, foi homem de grande riqueza e prestígio. Também envolvido com assuntos políticos, foi opositor de Péricles, a quem acusava de dilapidar os bens públicos em obras luxuosas.

Embora tendo como pais, homens de grandes feitos, Lisímaco e Melésias eram cidadãos um tanto quanto comuns, sem nenhum tipo de feito memorável. E transmitem a impressão de que assimilaram isso como uma espécie de “trauma”, devido aos pais ter os deixado, durante a juventude, na boa vida ao sabor dos passatempos, não lhes impondo uma educação rigorosa. Esta perspectiva faz com que Lisímaco e também Melésias tornem-se pais muito preocupados com a educação dos filhos, tendo eles o interesse em conhecer de fato, qual a melhor forma de educação deve-se prescrever aos filhos jovens, para que os mesmos tornem-se homens de grandes virtudes e feitos, razão essa que enseja a reunião.

Quanto aos convidados, Nícias e Laques, ambos eram generais de guerra e ilustríssimos homens. Eram também admiradores de Sócrates, seja pelos seus feitos militares, seja pelo seu discernimento com relação à boa educação.

Iniciado o debate acerca da importância da hoplomaquia e seus benefícios para a educação dos jovens, surgem opiniões contrárias entre Laques e Nícias a esse respeito, inclusive tendo Laques realizado uma observação curiosa, a de que os espartanos não se interessam pela hoplomaquia, embora sejam eles famosos por sua forte inclinação bélica, sendo um povo extremamente interessado em tudo o que é belicoso.

Diante da contenda, Sócrates, que é querido por todos os presentes, é convidado a integrar o debate. Ele introduz à discussão um enfoque às virtudes e a presença delas na saúde psíquica, “na alma”, dos jovens, tornando-os melhor, e a partir desse enfoque, concordam que do aprendizado das armas a virtude que aponta com maior ênfase é a coragem (andreía), qual passa então a ser o tema central do debate.

Assim, iniciando a investigação sobre o que é a coragem, Sócrates passa então a aplicar seu método filosófico-investigativo na busca da verdade: o Elenchos, qual será definido e terá sua aplicação analisada, sendo este o objeto do presente trabalho.

2 – Definição e forma de aplicação do Elenchos

O Elenchos é um método dialético que tem por objeto não apenas a simples refutação do interlocutor naquilo que ele supõe saber, fazendo-lhe o bem
[6] de conscientizá-lo sobre sua ignorância. Ele é instrumento, sobretudo, de busca pela verdade. Nos dizeres de Dorion (1997, p. 30): “é o teste, a prova que tem por fim verificar e colocar à luz se o indivíduo possui bem as qualidades (morais ou intelectuais) que ele pretende possuir”.

O método se realiza através do Silogismo e da Epagogé, extraindo do interlocutor definições das coisas que ele acredita saber, demonstrando que tais definições são contraditórias a outras opiniões por ele admitidas.

A Epagogé, termo grego que significa, de certo modo, “conduzir”, além de ser usada para refutação de definições já concebidas, é usada também como uma fase prévia à construção de premissas e definições a serem submetidas ao trabalho dos silogismos. Sócrates a usa principalmente quando os interlocutores, como por exemplo, Laques, têm certa carência de habilidade na construção do raciocínio lógico sobre uma definição do tema abordado que, no caso do texto é a coragem.

Na aplicação da Epagogé, para refutar premissas e definições ou construí-las, Sócrates apresenta exemplos sucessivos que são análogos entre si. Por exemplo, no diálogo com o personagem Laques, Sócrates usa da Epagogé para conseguir dele, uma definição universal do que é a coragem (de 190 e à 192 c), conforme analisado a seguir na aplicação do método tendo como interlocutor o próprio general Laques.

2.1 – A aplicação do Elenchos com interlocução de Laques

Ao ser interpelado para que exponha uma definição de coragem, Laques começa dizendo que a coragem é, na linha de combate, enfrentar o inimigo a pé firme, em vez de recuar. Mas Sócrates usa exemplos análogos entre si, usando a epagogé para demonstrar a Laques que aquilo que ele deseja obter, é uma definição de coragem que seja válida para qualquer situação e não só nos ataques da infantaria, conforme a seguir:

a) Exemplifica com o povo Cita, qual usa uma estratégia de combate em cavalaria que consiste em manter-se em recuo até o momento oportuno a uma investida, não com descoragem, mas sim com prudência;

b) Exemplifica também com a infantaria dos espartanos que, diferente da forma de combate com infantaria que Laques referiu-se, nem sempre combate a pé firme e na batalha de Platéias, recuou perante os geróforos, e posteriormente, diante de uma oportunidade passou à investida e venceu a batalha;

c) Toma como exemplo, as doenças, os prazeres, os desejos, demonstrando que a coragem também existe perante tais situações;

d) Ilustra por fim, definindo velocidade, não só a velocidade existente nas corridas, mas a velocidade de forma universal, como sendo a capacidade de muito realizar em pouco tempo, tudo isso a fim de conduzir o raciocínio de Laques a dar-lhe uma definição universal do que é a coragem.

Diante dos exemplos, Laques então apresenta sua definição: A coragem é a perseverança da alma.

Essa definição terá sua veracidade analisada por Sócrates dentro de um silogismo e posteriormente refutada, usando de premissas que, se aceitas, levará o interlocutor a contradizer a definição apresentada, conforme se verificará a seguir:

a) Sócrates questiona a Laques se ele está de acordo com a qualificação de que a coragem é algo realmente belo e bom, o que é imediatamente aceito.

b) Depois questiona se a perseverança acompanhada de sensatez pode ser considerado algo belo e bom, Laques responde afirmativamente.

c) Pergunta então o contrário, se a perseverança acompanhada de insensatez é algo prejudicial e mau; Laques concorda.

d) Sócrates então demonstra que o resultado de tais perguntas indicam que não pode ser bela e boa uma perseverança que é má e prejudicial, portanto a coragem não pode ser apenas perseverança e sim perseverança acompanhada de sensatez, fato que Laques concorda.

Assim, Sócrates refutou a primeira definição de coragem apresentada por Laques conduzindo-o a formar uma nova definição, ou seja, que nem toda perseverança é coragem, e sim, que perseverança somada a sensatez é coragem.

Contudo, dessa nova definição, Sócrates iniciará uma Epagogé que a refutará, um exemplo claro da Epagogé sendo usada para refutar definições e não para estabelecê-las.

Sócrates apresenta nessa nova Epagogé, exemplos que farão com que Laques concorde que pode haver coragem mediante perseverança somada à insensatez, diferentemente do que ele afirmou anteriormente. Veja-se alguns dos exemplos usados:

a) Sócrates sugere que um homem que persevera em gastar dinheiro com senso, sabendo que depois de gasta-lo ganhará mais, é menos corajoso que um homem que gasta sem ter certeza que ganhará posteriormente.

b) Também demonstra que um homem que luta com senso na guerra contra inimigos menos numerosos e ciente de que terá ajuda dos seus aliados é menos corajoso do que aquele que sozinho em campo inimigo ousa resistir e lutar.

c) exemplifica que aquele que persevera em lutar num combate de cavalaria com ciência de equitação é menos corajoso do que aquele que o faz sem ciência e que o mesmo acontece com quem combate com arcos. E além desses, aquele que se arrisca a mergulhar num poço sendo especialista em tal proeza é também menos corajoso do que aquele que o faz sem tal especialidade.

Laques concorda e, desse modo, tem refutada com essa epagogé, sua definição de coragem como sendo perseverança com sensatez, pois demonstrado que há coragem também com perseverança acompanhada de insensatez e ainda, que algo insensato e prejudicial não poderia ser belo e bom como havia Laques concordado no início.

Completamente perdido e confuso, Laques admite não saber o que é coragem e portanto, na aplicação do Elenchos com o Laques, chega-se a uma aporia, e Sócrates então passa a aplicá-lo ao Nícias.

2.2 – A aplicação do Elenchos com interlocução de Nícias

Ao ser interpelado, Nícias apresenta imediatamente sua definição do que é a coragem: a ciência do que é perigoso e do que é favorável, tanto na guerra como em qualquer outra circunstância.

Perante tal definição, Laques se antecede a Sócrates e tenta, de forma precária, aplicar o Elenchos ao colega Nícias, usando de um silogismo deficiente. Contudo ao apresentar suas premissas não obtém de Nícias respostas de concordância, tal como no momento em que, aproveitando-se de uma observação de Sócrates a respeito da eventual existência de coragem em animais, pergunta se Nícias concorda que os animais são corajosos, e é imediatamente contestado por ele, que não concorda em atribuir coragem aos animais ou qualquer ser humano que, por falta de entendimento não receie ao perigo, e os reconhece como temerários e loucos.

Essa passagem demonstra que o desfecho do Elenchos só é possível quando o interlocutor está de acordo com as premissas e exemplos apresentados no silogismo e na epagogé.

Retomando Sócrates a investigação do tema com Nícias, inicia-se o processo de refutação daquela definição apresentada, repita-se: coragem é a ciência do que é perigoso e do que é favorável, tanto na guerra como em qualquer outra circunstância.

O filósofo agora realizará um silogismo que se apresenta com maior complexidade por conter uma epagogé em seu interior. Observe-se.

a) Sócrates inicia o silogismo estabelecendo a definição de perigoso como sendo aquilo que causa temor e este, obviamente é a expectativa de um mal futuro; define também que favorável é a ausência desse temor futuro;

b) após, realiza então uma epagogé para estabelecer a premissa que a ciência não abarca apenas o futuro, mas também o passado e o presente, afim de avaliar as possibilidades futuras. Para isso usa como exemplo, a medicina, que ao investigar os antecedentes, os sintomas e a evolução das coisas referentes à saúde, é sempre a mesma, não existindo uma ciência separada para cada um desses momentos. Outros exemplos que também usa são; o da agricultura que daquele modo atua com relação às coisas referentes ao plantio, e do estratego na guerra, que age da mesma forma, estudando os antecedentes, os fatores e a evolução das coisas da guerra, a fim de avaliar os acontecimentos futuros e assim montar a melhor estratégia de combate. Assim, estabelece esta premissa, a de que a ciência que avalia o futuro, o passado e o presente é sempre a mesma;

c) de posse dessas premissas, Sócrates então refuta a definição dada pelo amigo Nícias, dizendo que a coragem não pode ser a ciência do que é perigoso e do que é favorável, pois o perigoso e o favorável abarcam apenas o futuro com relação ao bom e ao mal, enquanto a ciência, a exemplo das outras, abarca também o passado e o presente. Assim, se a coragem fosse como Nícias apresenta, seria capaz de determinar o bem ou o mal em todas as circunstâncias, não seria apenas uma parte da virtude como concordam todos os personagens, porque para tanto, a pessoa que soubesse o que é a coragem, para determinar o bem ou o mal em todos os momentos, seja futuro, passado ou presente, necessitaria também de estar de posse da prudência, da justiça, da piedade e de todas as outras partes da virtude, e não apenas da coragem.

3 – Conclusão

Investigadas e refutadas todas as definições apresentadas pelos personagens interlocutores Laques e Nícias, chega-se então a uma aporia, ou seja, a uma ausência de certeza filosófica definitiva para a questão inicial apresentada, qual seja; o que é a coragem?

Destarte, todos acordaram que, de fato, não conseguiram descobrir o que é a coragem e Sócrates, mais uma vez, realizou aquilo que ele entende ser o melhor bem que se pode fazer a uma pessoa: conscientiza-la da própria ignorância.


[1] - palestra ou ginásio, eram lugares de exercícios desportivos, quais, inclusive, Sócrates costumava freqüentar para que tivesse a oportunidade de se encontrar com a juventude.

[2] - trata-se de uma modalidade de luta armada, naturalmente ensinada por sofistas. Um exercício de esgrima no qual o atleta combate com couraça, grevas, elmo, escudo, espada e lança. O praticante da hoplomaquia é denominado hoplita.

[3] - embora em 183c à 184b, Laques relate com certo desprezo irônico uma ocasião em que o hoplita Estesilau, embarcado em uma trirreme, embaraçou sua lança com ponta de foice na embarcação do inimigo sendo arrastada por aquela, ensejando risos, não só na embarcação inimiga como também na trirreme que tripulava.

[4] - Magistrado com poder de legislar.

[5] - general do exército na antiga Atenas (Grécia), eleito anualmente pelo povo para ser um dos dez magistrados com poderes para cuidar especialmente das medidas de natureza militar.
[6] - Sócrates entende que o maior bem que sua filosofia pode fazer pelos seus interlocutores é conscientiza-los de sua própria ignorância, mostrando-os que, na verdade, não possuem a sabedoria que supõe saber e que só a partir desta conscientização da própria ignorância, o homem estará habilitado para iniciar sua busca pelo conhecimento verdadeiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parece que já li este texto.
Um dia,pessoalmente, lhe conto uma coisa engraçada a respeito.

Abraços

Fábio Amorim

Anônimo disse...

Plágio.