O céu de nossos
antepassados era baixo. Quando os antigos astrônomos sumérios, chineses e
coreanos subiam os degraus de seus zigurates quadrados, construídos de pedras, para
estudar as estrelas, tinham razões para supor que assim conseguiam uma visão
melhor, não porque - como hoje diríamos - se tinham elevado um pouco acima da
poeira e da turbulência do ar, mas porque estavam bastante mais próximos das
estrelas. Os egípcios consideravam o céu como uma espécie de teto de uma tenda,
apoiado em montanhas que marcavam os quatro cantos da terra, e como estas não
eram assim tão altas, também os céus não o seriam, presumidamente: as
gigantescas constelações egípcias pairavam próximas da humanidade, tão próximas
quanto a mãe que se inclinava para beijar o filho adormecido. O Sol grego
estava tão perto que Ícaro alcançou uma altitude de apenas alguns mil metros
quando o calor derreteu a cera de suas asas, fazendo com que o pobre rapaz
mergulhasse no indiferente Egeu. Nem estavam as estrelas gregas
significativamente mais distantes, quando Faetonte perdeu o controle do carro
do Sol, este desviou-se e projetou-se em direção às estrelas, com a mesma
rapidez com que um carro descontrolado atinge um poste, e em seguida, ricocheteou
de volta a Terra (torando os etíopes e deixando-os negros, nesse percurso).
Mas se os nossos
antepassados tinham pouca idéia da profundidade, estavam razoavelmente bem familiarizados com
os movimentos bidimensionais das estrelas e planetas no céu, e foi estudando
tais movimento que dos antigos sumérios, e provavelmente antes, houve estudiosos
do céu noturno dispostos a dedicar as horas da noite a solitária tarefa de,
apertando os olhos e esticando o pescoço, fazer observações servindo-se de
pedras alinhadas ou de quadrantes de madeira, ou simplesmente de seus dedos, pacientemente
registrando o que viam. Era um trabalho insano. Por que se dedicavam a ele?
Um dos motivos
pode ter sido o desejo inato, misterioso mas persistente, de expressar um
sentimento da participação humana na vida das estrelas. Como observou
Copérnico, a reverência pelas estrelas é tão profunda na consciência humana que
está impregnada na própria linguagem. “O que é mais nobre do que os céus",
escreveu ele, “os céus que contêm todas as coisas nobres? Seu próprio nome
deixa isso claro: Caelum (céus)
indicando aquilo que belamente esculpido; e Mundus
(mundo), pureza e elegância.”Até
mesmo Sócrates, embora pessoalmente indiferente à astronomia, admitia que a
alma ”é purificada e reanimada”' pelo estudo do céu.
Havia também
incentivos práticos. A navegação, entre outros: os marinheiros podiam calcular
a latitude medindo a elevação da estrela polar, e podiam dizer o tempo pelas
posições das estrelas, vantagens tão apreciadas que a gente do mar as codificou
na poesia e na mitologia, muito antes do advento da palavra escrita. Quando
Homero diz que a Ursa nunca se banha, está transmitindo o conhecimento do
marinheiro, de que a Ursa Maior, a constelação que encerra a Grande Carroça, é
circumpolar em latitudes mediterrâneas - isto é, nunca fica abaixo da linha do
horizonte do mar.
Outro motivo
prático era a contagem do tempo. Os fazendeiros da Antigüidade aprenderam a
fazer do céu em movimento um relógio e um calendário, e consultavam almanaques
riscados na madeira ou na pedra em busca de orientação astronômica para decidir
quando plantar e colher. Hesíodo, um dos primeiros poetas cujas palavras foram
escritas, surge da era pré-alfabetizada com muitos conselhos sobre como ler o
céu em busca de indicações sobre as estações:
Quando a grande Órion
subir, manda teus escravos
Joeirar o grau sagrado
de Deméter
Sobre a ventosa, gasta
eira. . .
Dá então aos escravos
um descanso; desatrela tua junta.
Mas quando Orión e Sírio
entrarem
No meio do céu, e
Arcturo ver
Os róseos dedos da
Aurora, então Perseu, colhe
As vinhas encacheadas, e
leva para casa a colheita. .
Quando a grande Órion
baixar, é chegado o tempo
De arar; e assim morre
o ano velho.
Os caçadores-coletores
que antecederam os lavradores também usavam o céu como calendário. Como um índio
Cahuilla, da Califórnia, disse a um pesquisador, na década de 1920:
Os antigos
costumavam estudar as estrelas muito cuidadosamente e, dessa maneira, podiam
dizer quando começava cada estação. Reuniam-se na casa cerimonial e discutiam
sobre a época em que certas estrelas deviam aparecer e com frequência faziam
apostas sobre isso. Era um assunto muito importante, pois o aparecimento de
certas estrelas dependia a estação do plantio. Depois de várias noites de
observação cuidadosa, quando uma determinada estrela finalmente aparecia, os
antigos corriam para o ar livre, gritavam e com freqüência dançavam. Na
primavera, essa alegria era particularmente acentuada, pois... podiam agora encontrar
certas plantas nas montanhas. Nunca iam às montanhas sem ter visto antes uma
determinada estrela, pois sabiam que antes disso não encontrariam alimentos
ali.
Stonehenge é uma
das milhares das máquinas antigas de contar o tempo, e cujas partes móveis
estavam todas no céu. A Grande Pirâmide de Guizé estava alinhada de acordo com
a estrela polar, e era possível determinar as estações pela sua sombra. Os
maias da velha Yucatán inscreveram em monumentos de pedra as fórmulas úteis
para a previsão de eclipses solares e para o nascer helíaco de Vênus (isto é, seu
aparecimento a oeste do Sol, como a "estrela da manhã"). As rodas de
pedra medicinais dos índios Plains, da América do Norte, indicavam pontos de
aparecimento das estrelas mais brilhantes, informando os seus arquitetos
nômades quando era chegado o momento de migrar para as pastagens sazonais. Os
28 postes dos albergues medicinais dos Cheyennes e dos Sioux teriam sido usados
para marcar os dias do mês lunar. “Ao levantar o abrigo da dança do sol", disse
o Alce Negro, sacerdote dos Oglala Sioux, “estamos realmente reproduzindo uma
semelhança do universo."
O
poder político desempenhou, ao que se presume, um papel nos primeiros esforços
para identificar os movimentos periódicos no céu, na medida em que aquilo que
se pode prever, pode-se controlar. O conhecimento do calendário deu aos
sacerdotes uma vantagem na impiedosa política dos Maias, e Cristóvão Colombo
conseguiu assustar os índios de Hispaniola a ponto de forçá-los a fornecer
comida à sua tripulação faminta advertindo que se não o fizessem, a Lua
“nasceria irada e inflamada para mostrar o mal que Deus lhes infligiria".
Fernando, o filho de Colombo, escreveu em seu diário para a noite de 29 de
fevereiro de 1504:
Ao nascer da Lua o eclipse começou, e quanto mais ela subia mais
se intensificava o eclipse. Os índios o observaram e ficaram tão assustados que
com gritos e lamentos acorreram aos navios, vindos de todos os lados, transportando
abastecimento, e imploraram ao Almirante, por todos os meios, que intercedesse
por eles junto a Deus, para que não os submetesse aos efeitos de sua ira, e
prometeram, no futuro, dar-lhe prontamente tudo o que precisasse.. . A partir
de então, eles sempre tiveram o cuidado de nos abastecer de tudo o que era necessário,
louvando sempre o Deus dos cristãos.
Mas quanto mais os
astrônomos pré-históricos se inteiravam dos movimentos periódicos que viam no
céu noturno, mais complicados estes se mostravam. Uma coisa era aprender as
periodicidades simples que a Lua completa um circuito das constelações
zodiacais em 28 dias, o Sol em 365 dias e 1/4, os planetas visíveis (do grego planétes, errante) em intervalos que iam
de 88 dias para o ligeiro Mercúrio, até 29 anos e meio para o pesado Saturno. Outra
coisa, muito mais desorientadora, era aprender que os planetas ocasionalmente
param em seu caminho e voltam para trás - movimento retrógrado - e que suas
órbitas se inclinam umas em relação às outras, como pratos mal empilhados, e
que o pólo celeste norte da Terra realiza uma precessão, oscilando num círculo
lento no céu, que leva 26.000 anos para ser concluído.
O problema de
decifrar essas complexidades, não reconhecidas na época, estava no fato de ser
a Terra, da qual vemos os planetas, também um planeta em movimento. É porque a
Terra faz uma órbita em volta do Sol, enquanto gira sobre seu eixo inclinado,
que há uma seqüência dia-noite do tempo, na qual qualquer estrela nasce e se
põe numa determinada latitude. O movimento de precessão da Terra modifica
lentamente a posição do pólo celeste norte. O movi- mento retrógrado que disso
resulta é conseqüência da combinação dos movi- mentos da Terra e dos outros
planetas. Ultrapassamos os planetas exteriores como um corredor que vai por uma
pista interna, e isso faz com que cada um deles, primeiro, pareça avançar,
depois hesitar e recuar pelo céu, à medida que a Terra passa por eles. Além
disso, como as suas órbitas são inclinadas em relação umas às outras, os
planetas fazem curvas para o norte e o sul, bem como para leste e oeste.
Essas
complicações, embora possam ter parecido uma maldição, constituíram, a longo
prazo, uma bênção para o desenvolvimento da cosmologia, o estudo do universo em
geral. Se os movimentos celestes fossem simples, teria sido possível
explicá-los exclusivamente em termos das histórias simples e poéticas que
caracterizaram as cosmologias antigas. Em lugar disso, mostraram-se tão
complicados e sutis que não foi possível prevê-los com exatidão sem conhecer a
realidade física do como e onde o Sol, a Lua e os planetas realmente se moviam,
no espaço tridimensional real. A verdade é bela, mas a beleza não é necessariamente
verdade: por mais agradável que possa ter sido para os sumérios imaginar que as
estrelas e planetas nadavam de volta do oeste para o leste todos os dias,
através de um rio subterrâneo sob uma Terra chata, essa concepção era
totalmente inútil quando se tratava de determinar quando Marte entraria num
movimento retrógrado, ou a Lua ocultaria Júpiter.
Em conseqüência,
cresceu lentamente a idéia de que um modelo adequado do universo devia ser não
só internamente coerente, como uma canção ou um poema, mas devia também fazer
previsões exatas que pudessem ser comprova- das pela observação. A ascendência
dessa tese marcou o começo do fim de nossa infância cosmológica. Como outros
ritos de passagem para a maturidade, porém, o esforço para construir um modelo
preciso do universo foi uma empresa Agridoce que exigiu trabalho árduo,
incerteza e poucas satisfações. De início, foram poucos os que a ela se dedicaram.
Um destes foi
Eudóxio. Ele entra nas páginas da História num dia de verão, aproximadamente no
ano 385 a C., quando desceu do barco que vinha de sua cidade natal de Cnido, na
Ásia Menor, deixou sua escassa bagagem numa estalagem barata perto do cais e
caminhou sete quilômetros pela poeirenta estrada até a Academia de Platão, nos
arredores a noroeste de Atenas. A Academia ficava num beco local, no bosque de
oliveiras, os "bosques da academia" originais, perto de Colona, o
santuário do cego Édipo, onde as folhas dos álamos-brancos se transformavam num
prateado brilhante ao vento, e os rouxinóis cantavam dia e noite. O mentor de
Platão, Sócrates, tinha escolhido os bosques da Academia, que até mesmo
Aristófanes, o caluniador de Sócrates, descreveu ternamente como “perfumados de
madressilvas e de um contentamento tranqüilo”.
A própria beleza
era o principal objeto de estudo na academia, embora uma beleza mais abstrata.
Que só os geômetras entrem aqui, dizia a inscrição no alto da porta, e era
grande o encantamento geral pela elegância das formas geométricas. A geometria
(geometria, “a medição da Terra") tinha começado como coisa prática, como
o método empregado pelos egípcios nas medições anuais pelas quais se
restabeleciam os limites das fazendas inundadas pelo Nilo. Mas nas mãos de
Platão e seus discípulos a geometria foi elevada a uma condição próxima à da
teologia. Para Platão, as formas geométricas abstratas eram o universo, e os
objetos físicos, apenas sua sombra imperfeita. Como interessava-se mais pela
perfeição do que pela imperfeição, Platão escreveu encômios às estrelas, mas
raramente saiu à noite para estudá-las.
Apoiava sua idéia
com uma imponente autoridade pessoal. Platão não era apenas inteligente, mas
também rico - um aristocrata, um dos “guardiães” da sociedade grega,
descendendo, pelo lado materno, de Sólon, o Legislador, e pelo paterno, dos
primeiros reis de Atenas - e também, fisicamente, impressionante. Platão,
significa “de ombros largos", apelido que lhe fora dado pelo seu mestre de
ginástica, quando, ainda rapaz, lutou nos Jogos Ístmicos. Eudóxio, como podemos
supor, ficou devidamente impressionado. Era, porém, um geômetra independente -
viria a colaborar no lançamento das bases da geometria euclidiana e a definir o
“retângulo dourado", uma elegante proporção que se evidencia por toda
parte, desde o Partenon até os quadros de Mondrian - e, ao contrário de Platão,
combinava os seus raciocínios matemáticos abstratos com uma paixão pelos fatos
físicos. Quando viajou ao Egito (peregrinação à sé do conhecimento geométrico
que muitos pensadores gregos empreenderam, embora Platão pareça não ter
encontrado nunca tempo para ela), Eudóxio não só realizou pesquisas em
geometria, como aplicou às estrelas, construindo um observatório astronômico às
margens do Nilo, e ali mapeando o céu. O observatório, embora primitivo,
evidenciava sua convicção de que uma teoria do universo devia atender às
exigências não só da contemplação intemporal, mas também da explicação do
incessante movimento do céu.
Quando o
amadurecido Eudóxio voltou à Academia, já então como erudito renomado, com seu
séquito próprio de alunos, começou a trabalhar num modelo do cosmos que devia
ser ao mesmo tempo platonicamente agradável e empiricamente defensável. Nesse
modelo, o universo era composto de esferas concêntricas que cercavam a Terra, também
uma esfera . Isso teria satisfeito
Platão, que considerava a esfera como "o mais perfeito" dos sólidos
geométricos, por ter o mínimo possível de superfície em relação ao volume de espaço
que encerra. Mas o universo de Eudóxio devia enquadrar-se melhor nos fenômenos
observados, e essa aspiração exigia complexidade. Ao cosmos esférico simples,
proposto por Parmênides um século antes, Eudóxio acrescentou mais esferas. As
novas esferas influenciavam os movimentos do Sol, Lua e planetas, alterando
suas orbitas e velocidades, e, ajustando os seus índices de rotação e a
inclinação de seus eixos, Eudoxio verificou que podia explicar, mais ou menos,
o movimento retrogrado e outras complexidades do movimento celeste. Foram
necessárias 27 esferas para isso. Era mais do que Platão teria gostado, mas
correspondia um pouco mais de perto aos dados do que os modelos anteriores. A
hegemonia da beleza pura, abstrata, tinha começado o seu lento recuo ante o
ataque obstinado, insistente, do mundo material.
Em última análise,
porém, até mesmo um cosmos complexo como o de Eudoxio mostrava-se inadequado. Os
dados eram constantemente aperfeiçoados - com a conquista da Babilônia por
Alexandre, o Grande, em 330 a.C., os gregos tiveram acesso aos seus registros
astronômicos, que antes não estavam ao seu alcance, ao mesmo tempo que
continuavam a fazer observações próprias, pelo menos intermitentes - e o modelo
de Eudóxio não explicava as sutilezas reveladas por essas informações mais
amplas e refinadas. Começou assim um ciclo, semelhante ao da fênix, da ciência,
da cosmologia, em que as teorias, por mais grandiosas que fossem, dependiam de
dados empíricos que têm o poder de destruí-las.
O passo seguinte
coube, para melhor ou para pior, a Aristóteles. Rotineiramente descrito nos
livros didáticos como uma alternativa empirista a Platão, Aristóteles foi, na
realidade, dedicado a observação. Diz-se, por exemplo, que ele teria passado
sua lua-de-mel recolhendo espécimes da vida marinha. Mas era também amigo da
exploração e não tolerava ambigüidades, qualidades que não são salutares na
ciência. Filho de um médico, herdou o hábito que têm os médicos de se mostrarem
confiantes e tranqüilizantes ante todas as perguntas ansiosas dos pacientes. Se
pressionado, essa tendência o tornava crédulo (as mulheres, disse ele, têm
menos dentes do que os homens) e o levava a extremos de categorização ociosa, como ao observar que: "os animais
devem ser divididos em três partes, uma pela qual o alimento é ingerido, outra
pela qual o excremento é expelido e uma terceira sendo a região intermediária
entre essas duas."
Aristóteles escreveu e ensinou lógica, retórica, poesia, ética, economia, política,
física, metafisica, história natural, anatomia, fisiologia e condições
climáticas, e o seu pensamento sobre muitos desses assuntos foi sutil como o
orvalho, mas não era homem a cujos lábios acorresse com facilidade a frase
"Eu não sei", Tudo o que sua mente tocava, ao mesmo tempo esclarecia
e anestesiava.
Ninguém gosta,
realmente, de um homem que sabe tudo, e Aristóteles tornou-se a primeira vítima
conhecida da política acadêmica. Embora fosse aluno da Academia e seu professor
mais célebre, e claramente o melhor qualificado para substituir Platão como seu
diretor, foi duas vezes preterido. Tomou, então a única atitude satisfatória
para um homem da sua estatura, e foi lecionar em outra instituição. Como não
havia nenhuma outra instituição acadêmica, foi obrigado a criá-la, e assim teve
origem o Liceu.
Quando chegou a
sua vez de manifestar-se sobre a estrutura do universo, Aristóteles baseou seu
modelo nas esferas celestes de Eudóxio, a quem estimara na Academia pelo seu
caráter moderado, bem como pelos seus feitos ímpares na astronomia. Como seu assistente de pesquisa
no projeto de cosmologia, Aristóteles escolheu o astrônomo Calipo, natural da
terra adotiva de Eudóxio, Cízico. Juntos, Aristóteles e Calipo produziram um
modelo - consistente, simétrico, expansivo e belo de ser visto - que se inclui entre
as mais excitantes das muitas cosmogonias errôneas da história. Incluído no
livro De Caelo (Dos céus) de
Aristóteles, iria seduzir, e induzir ao erro, o mundo durante vários séculos.
Não há necessidade de nos determos em seus detalhes: consistiam principalmente
de esferas superpostas e de ajustes em seus parâmetros, com o resultado de que
o universo passava a ter 55 esferas brilhantes e translúcidas. Além da esfera
mais exterior. Aristóteles sustentava, com base em estranha epistemologia, que
nada podia existir, nem mesmo o espaço. No centro ficava uma Terra imóvel, o
brilhante diadema do modelo e seu erro fatal.
Frente a uma
inevitável disparidade entre a teoria e a observação, os cosmólogos que
trabalhavam a partir da hipótese geocêntrica não tinham outra escolha senão
continuar a tornar seus modelos cada vez mais complicados. E assim a cosmologia
foi levada a um labirinto de epiciclos e excentricidades no qual permaneceria
enredada durante mais de mil anos. O virtuoso dessa exploração foi Cláudio
Ptolomeu.
Nasceu ele no
século II, em Prolemaida, sobre o Nilo, e o financiamento de seus estudos
astronômicos foi feito pela dinastia dos Ptolomeus, através do museu de
Alexandria. Quaisquer que fossem as suas deficiências - e muitas se
evidenciaram, inclusive provas de que ele falsificou alguns dados -, foi um
astrônomo prático, e não um teórico de gabinete. Mapeou as estrelas a partir de
um observatório em Canopo, a cidade com o nome de uma estrela, situada a cerca de
25 km a leste de Alexandria, e conhecia a refração e a extinção atmosféricas e
muitas outras tribulações que perseguem o observador cuidadoso. Deu à sua
principal obra cosmológica o nome de Sintaxe Matemática, significando isso “a
composição matemática", mas ela nos chegou com o nome de Almagesto, ou
seja, “o maior” em árabe. O que ele fez de maneira esplêndida foi prever os
movimentos do Sol, da Lua e das estrelas com mais precisão do que seus
antecessores.
Os epiciclos e os
excêntricos pelos quais Ptolomeu buscou conciliar a teoria e a observação
tinham sido introduzidos pelo geômetra Apolônio de Perga e aperfeiçoados pelo
astrônomo Hiparco. Os epiciclos eram pequenas órbitas circulares impostas sobre
as órbitas dos planetas: se um planeta, para Aristóteles, circulava a terra
como um elefante preso a uma corda, o mesmo planeta, para Ptolomeu, descrevia a
órbita de uma pedra atada a uma corda, lançada pelo homem que montava o
elefante. Os excêntricos melhoraram a adequação entre a página escrita e o céu
noturno, transferindo o centro presuntivo das várias es- feras celestes para um
lado do centro do universo. A esses movimentos Ptolomeu acrescentou outro, o
movimento circular realizado pelo centro das esferas planetárias. O poste da
corda do elefante entrava agora, ele próprio, em órbita em torno do centro do
universo, arrastando todo o sistema de esferas e epiciclos de um lado para
outro, de modo que os planetas podiam aproximar-se e afastar-se da Terra.
O sistema era
deselegante - perdera quase toda a simetria que tornava as esferas celestes do
agrado da estética de Aristóteles - mas funcionava, mais ou menos. Girando e
zumbindo, o universo ptolomaico podia prever quase todos os movimentos
planetários observados - e quando não o previa, Ptolomeu manipulava os dados
para que se ajustassem. Em sua elaboração, e nas elaborações que astrônomos
posteriores foram obrigados a fazer, o sistema fazia previsões suficientemente
exatas para manter sua reputação como “o maior" guia dos movimentos
celestes, desde a época de Ptolomeu até o Renascimento.
O preço pago pelos
seguidores de Ptolomeu pela precisão adquirida por seu modelo foi esquecer a
pretensão de que ele representasse a realidade física. O sistema ptolomaico
passou a ser considerado não como um modelo mecânico do universo, mas como uma ficção
matemática útil. Todas aquelas rodas dentro de rodas não existiam realmente no
espaço - tal como, por exemplo, as linhas geométricas de limites registrados na
repartição alexandrina de terras não representavam linhas reais traçadas nas
propriedades inundadas ao longo do Nilo. Como observou Proclo, um neoplatônico
do século V: “Esses círculos existem apenas no pensamento... Explicam os
movimentos naturais por meio de coisas que não tem existência na natureza.”
O próprio Ptolomeu achava que as complexidades do modelo simplesmente refletiam
as encontradas no céu; se a solução foi deselegante, foi deselegante, disse
ele, também o era o problema:
Enquanto nos limitarmos a esses modelos que montamos, julgaremos a
composição e sucessão dos vários movimentos desajeitada. Organizá-los de modo
que cada movimento possa ser realizado livremente, não parece possível. Mas
quando estudamos o que acontece no céu, não somos perturbados por essa mistura
de movimentos.
O objetivo da teoria não era, portanto ,retratar
o mecanismo real do universo, mas simplesmente, “salvar as aparências”. Muito
já se ridicularizou essa visão e grande parte de tal ridículo as expensas de
Ptolomeu, mas a ciência de hoje recorre com freqüência a abstrações intangíveis.
O "continuum espaço-tempo"
descrito pela teoria geral da relatividade é um desses conceitos, e também o é
o número quântico chamado de "isospin",e não obstante, ambos tiveram
muito êxito na previsão e na explicação de acontecimentos observados no mundo. Devemos
dizer, em defesa de Ptolomeu, que ele pelo menos teve a coragem de admitir as
limitações de sua teoria. A frase “salvar as aparências" é de Platāo, e
sua ascensão, através do universo ptolomaico, foi uma acentuada vitória do
idealismo platônico e uma derrota da dedução empírica. Platão compartilhava com
seu mestre Sócrates de um profundo ceticismo sobre a capacidade que tem a mente
humana de compreender a natureza pelo estudo dos objetos e acontecimentos. Como
Sócrates disse ao seu amigo Fedro enquanto caminhavam às margens do Ilisso: “
Ainda não posso 'conhecer-me a mim mesmo', como manda a inscrição em Delfos, e
enquanto perdurar essa ignorância, parece-me absurdo indagar sobre matérias
estranhas." Entre essas
"matérias estranhas" estava a estrutura do universo. Aristóteles
amava Platão, que não parece ter retribuído a devoção com a mesma intensidade: suas
discordâncias iam além da filosofia e chegavam aos de- talhes do estilo. Platão
vestia-se com simplicidade, ao passo que Aristóteles usava roupas elegantes, anéis
de ouro e penteados caros. Aristóteles gostava dos livros; Platão desconfiava
dos homens que eram demasiado literários.
Com um toque da ironia que sobreviveu séculos, Platão chamava Aristóteles de “o
cérebro".
Aristóteles,
apesar de todas as suas tendências empíricas, nunca perdeu o apego à beleza das
imortais formas geométricas de Platāo. Seu universo de esferas lúcidas foi um
tipo de céu na terra, onde seu espírito, e o de Platāo, podiam viver juntos em
paz. Nem a ciência, nem a filosofia, conseguiram ainda ter êxito onde
Aristóteles falhou. Em conseqüência, sua sombra, e a de Platāo, continuam a
disputa, nas páginas das revistas filosóficas e científicas, e em milhares de
laboratórios e salas de aula. Quando os filósofos da ciência lutam hoje com
problemas como saber se as partículas subatômicas se comportam de maneira
determinista, ou se o espaço-tempo de dez dimensões representa a verdadeira
arquitetura do antigo universo ou se é apenas um recurso de interpretação,
estão, num certo sentido, ainda tentando celebrar a paz entre o homem de ombros
largos e seu brilhante e ousado discípulo,"o cérebro".