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sábado, 18 de dezembro de 2021

CUBA - Quando o Extraordinário se Torna Cotidiano (extraído de Cartas a Che Guevara)

As orientações do Che dominaram o primeiro projeto de construção do socialismo em Cuba. Sua visão associada da política, da moral e da economia fez com que ele, em primeiro lugar, pensasse na industrialização como o caminho econômico para a soberania de Cuba no cenário internacional. Para tanto, conseguiu maquinaria suficiente nos ex-países do Leste europeu, porém como a industrialização não se reduz a isso, mas inclui, entre outros pré-requisitos, mão-de-obra qualificada, tecnologia, acesso a matérias-primas, canais de comercialização e formas de financiamento, aquela maquinaria praticamente não chegou a ser utilizada. 

Seu apelo no discurso de Argel em 1965, para que os países socialistas funcionassem como uma espécie de substitutos da acumulação primitiva de capital para os países atrasados, resgatava as dificuldades cubanas para romper o círculo de ferro de país primário exportador que, de alguma forma, não conseguiu superar. A integração à comunidade econômica socialista foi feita com base nas vantagens comparativas de Cuba - açúcar, cítricos, fumo, níquel - e, embora representassem a possibilidade importante de garantir mercados e petróleo a preços estáveis - esta e não o preço do açúcar vantagem real - ,implicavam manter Cuba como um país sem parque industrial. O peso desse ônus recaiu fortemente sobre os cubanos no momento da desaparição da URSS, quando sua balança comercial ruiu sob o peso da importação de petróleo e outros produtos industriais básicos no mercado internacional, sem poder contar com financiamentos bancários, pela moratória da dívida externa decretada em 1985. 

Em segundo lugar, o Che buscou desde o começo a desmercantilização da economia e da cabeça das pessoas.“...O socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo lutamos contra a alienação. ” Os serviços públicos passaram a ser gratuitos, o trabalho voluntário foi incentivado em detrimento dos incentivos materiais. O Che apostava fortemente na generalização e na prolongação da consciência revolucionária despertada pelo processo de luta pelo poder, porque aquelas medidas supunham que o nível de compromisso político e ideológico da vanguarda se estendesse a amplos setores da população, prolongando aquele momento mágico que ele já havia mencionado com tanta evidência: "Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução”. Essa lua-de-mel revolucionária supunha, por sua vez, a extensão da revolução para outros países da América Lati- na e, eventualmente, da África e da Ásia, sem o que as al- ternativas cubanas se estreitariam - ou um acordo geral com a URSS, com todas as implicações sobre o modelo de sociedade e sobre linha política internacional que isso supunha, ou ficar debilitado diante das pressões norte-americanas, que somavam o bloqueio econômico continental às agressões militares. 

A ida do Che à África e depois à Bolívia estava assim vinculada ao projeto original da revolução cubana, cujo destino se jogava na extensão da revolução. Não era apenas o Vietnã que dependia que se criasse “dois , três, muitos Vietnãs”, mas a própria Cuba. 

O Che não buscava uma revolução na Bolívia mas, valendo-se da localização geográfica daquele país, no coração da América do Sul, catalisar os núcleos de luta armada que surgiam na Argentina, no Brasil, no Uruguai, associando-os aos já existentes na Colômbia, na Venezuela, no Peru e na América Central - na Nicarágua, na Guatemala. Como todo projeto dessa ordem, a vitória leva à consagração, a derrota é catalogada como "aventura", como “desvairio", como “insanidade". A mesma loucura de Bolívar, de Martí, de Zapata, de Sandino, de Fidel, de Mao, de Ho Chi Minh, se derrotados. 

O que do Che sobreviveu ao Che?

A generalização do capitalismo como nunca havia acontecido na história mundial só atualiza e multiplica os temas pelos quais o Che lutou. Uma sociedade na medida do homem, solidária, cooperativa, de homens livres, encontra no grau de desenvolvimento tecnológico um apoio fundamental.“...atrás de cada técnica há alguém que a empunha.” As relações sociais em que se assenta o capitalismo - a produção cada vez mais social e a apropriação cada vez mais privada, centrada na busca permanente do lucro, que encontra no capital financeiro seu paraíso - é que bloqueiam a possibilidade de os homens se tornarem livres e solidários. 

A extensão mundial dos grandes circuitos de comunicação poderia ser o canal da comunicação universal entre os homens, mas torna-se veículo de imposição hegemônica dos que produzem 75% dos programas dos grandes meios de comunicação - os EUA - e que podem subsidiar sua internet em detrimento de um diálogo universal. “... a técnica é uma arma e quem sentir que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser, deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade e, por isso, resgatar a sociedade, para que toda a técnica sirva para a maior quantidade possível de seres humanos e para que possamos construir a sociedade do futuro - qualquer que seja o homem que nós lhe demos-, essa sociedade com que sonhamos, à que nós chamamos, como a chamou o fundador do socialis- mo científico, “o comunismo'.” 

O final do século vê as elites políticas se perpetuarem no poder, apesar da extensão das democracias no mundo. Alternativas revolucionárias são derrotadas ou absorvidas, tendências divergentes assimilam teses de seus adversários. As novas gerações não encontram propostas que respondam à sua disponibilidade e idealismo e se entregam às viagens das drogas e do consumo.

Como reagiriam as novas gerações a um apelo do Che?

“Nós, socialistas, somos mais livres porque mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres. 

“O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-lhe a substância proteica e a roupagem; nós as criaremos. 

“Nossa liberdade e sua sustentação cotidiana têm cor de sangue e estão repletas de sacrifícios. 

"O caminho é longo e em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos. 

“Nós nos forjaremos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica. 

“A personalidade desempenha o papel de mobilização e de direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e enquanto não se afasta do caminho." 

Ou então, para concluir:

"Deixa-me dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

História da Astronomia - O Céu dos Antigos.

 

 O céu de nossos antepassados era baixo. Quando os antigos astrônomos sumérios, chineses e coreanos subiam os degraus de seus zigurates quadrados, construídos de pedras, para estudar as estrelas, tinham razões para supor que assim conseguiam uma visão melhor, não porque - como hoje diríamos - se tinham elevado um pouco acima da poeira e da turbulência do ar, mas porque estavam bastante mais próximos das estrelas. Os egípcios consideravam o céu como uma espécie de teto de uma tenda, apoiado em montanhas que marcavam os quatro cantos da terra, e como estas não eram assim tão altas, também os céus não o seriam, presumidamente: as gigantescas constelações egípcias pairavam próximas da humanidade, tão próximas quanto a mãe que se inclinava para beijar o filho adormecido. O Sol grego estava tão perto que Ícaro alcançou uma altitude de apenas alguns mil metros quando o calor derreteu a cera de suas asas, fazendo com que o pobre rapaz mergulhasse no indiferente Egeu. Nem estavam as estrelas gregas significativamente mais distantes, quando Faetonte perdeu o controle do carro do Sol, este desviou-se e projetou-se em direção às estrelas, com a mesma rapidez com que um carro descontrolado atinge um poste, e em seguida, ricocheteou de volta a Terra (torando os etíopes e deixando-os negros, nesse percurso).

 

Mas se os nossos antepassados tinham pouca idéia da profundidade,  estavam razoavelmente bem familiarizados com os movimentos bidimensionais das estrelas e planetas no céu, e foi estudando tais movimento que dos antigos sumérios, e provavelmente antes, houve estudiosos do céu noturno dispostos a dedicar as horas da noite a solitária tarefa de, apertando os olhos e esticando o pescoço, fazer observações servindo-se de pedras alinhadas ou de quadrantes de madeira, ou simplesmente de seus dedos, pacientemente registrando o que viam. Era um trabalho insano. Por que se dedicavam a ele?

        

Um dos motivos pode ter sido o desejo inato, misterioso mas persistente, de expressar um sentimento da participação humana na vida das estrelas. Como observou Copérnico, a reverência pelas estrelas é tão profunda na consciência humana que está impregnada na própria linguagem. “O que é mais nobre do que os céus", escreveu ele, “os céus que contêm todas as coisas nobres? Seu próprio nome deixa isso claro: Caelum (céus) indicando aquilo que belamente esculpido; e Mundus (mundo), pureza e elegância.”[1]Até mesmo Sócrates, embora pessoalmente indiferente à astronomia, admitia que a alma ”é purificada e reanimada”' pelo estudo do céu.

 

Havia também incentivos práticos. A navegação, entre outros: os marinheiros podiam calcular a latitude medindo a elevação da estrela polar, e podiam dizer o tempo pelas posições das estrelas, vantagens tão apreciadas que a gente do mar as codificou na poesia e na mitologia, muito antes do advento da palavra escrita. Quando Homero diz que a Ursa nunca se banha, está transmitindo o conhecimento do marinheiro, de que a Ursa Maior, a constelação que encerra a Grande Carroça, é circumpolar em latitudes mediterrâneas - isto é, nunca fica abaixo da linha do horizonte do mar.

 

Outro motivo prático era a contagem do tempo. Os fazendeiros da Antigüidade aprenderam a fazer do céu em movimento um relógio e um calendário, e consultavam almanaques riscados na madeira ou na pedra em busca de orientação astronômica para decidir quando plantar e colher. Hesíodo, um dos primeiros poetas cujas palavras foram escritas, surge da era pré-alfabetizada com muitos conselhos sobre como ler o céu em busca de indicações sobre as estações:

 

Quando a grande Órion subir, manda teus escravos

Joeirar o grau sagrado de Deméter

Sobre a ventosa, gasta eira. . .

Dá então aos escravos um descanso; desatrela tua junta.

Mas quando Orión e Sírio entrarem

No meio do céu, e Arcturo ver

Os róseos dedos da Aurora, então Perseu, colhe

As vinhas encacheadas, e leva para casa a colheita. .

Quando a grande Órion baixar, é chegado o tempo

De arar; e assim morre o ano velho.[2]

 

Os caçadores-coletores que antecederam os lavradores também usavam o céu como calendário. Como um índio Cahuilla, da Califórnia, disse a um pesquisador, na década de 1920:

 

Os antigos costumavam estudar as estrelas muito cuidadosamente e, dessa maneira, podiam dizer quando começava cada estação. Reuniam-se na casa cerimonial e discutiam sobre a época em que certas estrelas deviam aparecer e com frequência faziam apostas sobre isso. Era um assunto muito importante, pois o aparecimento de certas estrelas dependia a estação do plantio. Depois de várias noites de observação cuidadosa, quando uma determinada estrela finalmente aparecia, os antigos corriam para o ar livre, gritavam e com freqüência dançavam. Na primavera, essa alegria era particularmente acentuada, pois... podiam agora encontrar certas plantas nas montanhas. Nunca iam às montanhas sem ter visto antes uma determinada estrela, pois sabiam que antes disso não encontrariam alimentos ali.[3]

 

Stonehenge é uma das milhares das máquinas antigas de contar o tempo, e cujas partes móveis estavam todas no céu. A Grande Pirâmide de Guizé estava alinhada de acordo com a estrela polar, e era possível determinar as estações pela sua sombra. Os maias da velha Yucatán inscreveram em monumentos de pedra as fórmulas úteis para a previsão de eclipses solares e para o nascer helíaco de Vênus (isto é, seu aparecimento a oeste do Sol, como a "estrela da manhã"). As rodas de pedra medicinais dos índios Plains, da América do Norte, indicavam pontos de aparecimento das estrelas mais brilhantes, informando os seus arquitetos nômades quando era chegado o momento de migrar para as pastagens sazonais. Os 28 postes dos albergues medicinais dos Cheyennes e dos Sioux teriam sido usados para marcar os dias do mês lunar. “Ao levantar o abrigo da dança do sol", disse o Alce Negro, sacerdote dos Oglala Sioux, “estamos realmente reproduzindo uma semelhança do universo."[4]

 

         O poder político desempenhou, ao que se presume, um papel nos primeiros esforços para identificar os movimentos periódicos no céu, na medida em que aquilo que se pode prever, pode-se controlar. O conhecimento do calendário deu aos sacerdotes uma vantagem na impiedosa política dos Maias, e Cristóvão Colombo conseguiu assustar os índios de Hispaniola a ponto de forçá-los a fornecer comida à sua tripulação faminta advertindo que se não o fizessem, a Lua “nasceria irada e inflamada para mostrar o mal que Deus lhes infligiria". Fernando, o filho de Colombo, escreveu em seu diário para a noite de 29 de fevereiro de 1504:

 

Ao nascer da Lua o eclipse começou, e quanto mais ela subia mais se intensificava o eclipse. Os índios o observaram e ficaram tão assustados que com gritos e lamentos acorreram aos navios, vindos de todos os lados, transportando abastecimento, e imploraram ao Almirante, por todos os meios, que intercedesse por eles junto a Deus, para que não os submetesse aos efeitos de sua ira, e prometeram, no futuro, dar-lhe prontamente tudo o que precisasse.. . A partir de então, eles sempre tiveram o cuidado de nos abastecer de tudo o que era necessário, louvando sempre o Deus dos cristãos.[5]

 

Mas quanto mais os astrônomos pré-históricos se inteiravam dos movimentos periódicos que viam no céu noturno, mais complicados estes se mostravam. Uma coisa era aprender as periodicidades simples que a Lua completa um circuito das constelações zodiacais em 28 dias, o Sol em 365 dias e 1/4, os planetas visíveis (do grego planétes, errante) em intervalos que iam de 88 dias para o ligeiro Mercúrio, até 29 anos e meio para o pesado Saturno. Outra coisa, muito mais desorientadora, era aprender que os planetas ocasionalmente param em seu caminho e voltam para trás - movimento retrógrado - e que suas órbitas se inclinam umas em relação às outras, como pratos mal empilhados, e que o pólo celeste norte da Terra realiza uma precessão, oscilando num círculo lento no céu, que leva 26.000 anos para ser concluído.[6]

 

O problema de decifrar essas complexidades, não reconhecidas na época, estava no fato de ser a Terra, da qual vemos os planetas, também um planeta em movimento. É porque a Terra faz uma órbita em volta do Sol, enquanto gira sobre seu eixo inclinado, que há uma seqüência dia-noite do tempo, na qual qualquer estrela nasce e se põe numa determinada latitude. O movimento de precessão da Terra modifica lentamente a posição do pólo celeste norte. O movi- mento retrógrado que disso resulta é conseqüência da combinação dos movi- mentos da Terra e dos outros planetas. Ultrapassamos os planetas exteriores como um corredor que vai por uma pista interna, e isso faz com que cada um deles, primeiro, pareça avançar, depois hesitar e recuar pelo céu, à medida que a Terra passa por eles. Além disso, como as suas órbitas são inclinadas em relação umas às outras, os planetas fazem curvas para o norte e o sul, bem como para leste e oeste.

 

Essas complicações, embora possam ter parecido uma maldição, constituíram, a longo prazo, uma bênção para o desenvolvimento da cosmologia, o estudo do universo em geral. Se os movimentos celestes fossem simples, teria sido possível explicá-los exclusivamente em termos das histórias simples e poéticas que caracterizaram as cosmologias antigas. Em lugar disso, mostraram-se tão complicados e sutis que não foi possível prevê-los com exatidão sem conhecer a realidade física do como e onde o Sol, a Lua e os planetas realmente se moviam, no espaço tridimensional real. A verdade é bela, mas a beleza não é necessariamente verdade: por mais agradável que possa ter sido para os sumérios imaginar que as estrelas e planetas nadavam de volta do oeste para o leste todos os dias, através de um rio subterrâneo sob uma Terra chata, essa concepção era totalmente inútil quando se tratava de determinar quando Marte entraria num movimento retrógrado, ou a Lua ocultaria Júpiter.

 

Em conseqüência, cresceu lentamente a idéia de que um modelo adequado do universo devia ser não só internamente coerente, como uma canção ou um poema, mas devia também fazer previsões exatas que pudessem ser comprova- das pela observação. A ascendência dessa tese marcou o começo do fim de nossa infância cosmológica. Como outros ritos de passagem para a maturidade, porém, o esforço para construir um modelo preciso do universo foi uma empresa Agridoce que exigiu trabalho árduo, incerteza e poucas satisfações. De início, foram poucos os que a ela se dedicaram.


Um destes foi Eudóxio. Ele entra nas páginas da História num dia de verão, aproximadamente no ano 385 a C., quando desceu do barco que vinha de sua cidade natal de Cnido, na Ásia Menor, deixou sua escassa bagagem numa estalagem barata perto do cais e caminhou sete quilômetros pela poeirenta estrada até a Academia de Platão, nos arredores a noroeste de Atenas. A Academia ficava num beco local, no bosque de oliveiras, os "bosques da academia" originais, perto de Colona, o santuário do cego Édipo, onde as folhas dos álamos-brancos se transformavam num prateado brilhante ao vento, e os rouxinóis cantavam dia e noite. O mentor de Platão, Sócrates, tinha escolhido os bosques da Academia, que até mesmo Aristófanes, o caluniador de Sócrates, descreveu ternamente como “perfumados de madressilvas e de um contentamento tranqüilo”.[7]

 

A própria beleza era o principal objeto de estudo na academia, embora uma beleza mais abstrata. Que só os geômetras entrem aqui, dizia a inscrição no alto da porta, e era grande o encantamento geral pela elegância das formas geométricas. A geometria (geometria, “a medição da Terra") tinha começado como coisa prática, como o método empregado pelos egípcios nas medições anuais pelas quais se restabeleciam os limites das fazendas inundadas pelo Nilo. Mas nas mãos de Platão e seus discípulos a geometria foi elevada a uma condição próxima à da teologia. Para Platão, as formas geométricas abstratas eram o universo, e os objetos físicos, apenas sua sombra imperfeita. Como interessava-se mais pela perfeição do que pela imperfeição, Platão escreveu encômios às estrelas, mas raramente saiu à noite para estudá-las.

 

Apoiava sua idéia com uma imponente autoridade pessoal. Platão não era apenas inteligente, mas também rico - um aristocrata, um dos “guardiães” da sociedade grega, descendendo, pelo lado materno, de Sólon, o Legislador, e pelo paterno, dos primeiros reis de Atenas - e também, fisicamente, impressionante. Platão, significa “de ombros largos", apelido que lhe fora dado pelo seu mestre de ginástica, quando, ainda rapaz, lutou nos Jogos Ístmicos. Eudóxio, como podemos supor, ficou devidamente impressionado. Era, porém, um geômetra independente - viria a colaborar no lançamento das bases da geometria euclidiana e a definir o “retângulo dourado", uma elegante proporção que se evidencia por toda parte, desde o Partenon até os quadros de Mondrian - e, ao contrário de Platão, combinava os seus raciocínios matemáticos abstratos com uma paixão pelos fatos físicos. Quando viajou ao Egito (peregrinação à sé do conhecimento geométrico que muitos pensadores gregos empreenderam, embora Platão pareça não ter encontrado nunca tempo para ela), Eudóxio não só realizou pesquisas em geometria, como aplicou às estrelas, construindo um observatório astronômico às margens do Nilo, e ali mapeando o céu. O observatório, embora primitivo, evidenciava sua convicção de que uma teoria do universo devia atender às exigências não só da contemplação intemporal, mas também da explicação do incessante movimento do céu.

 

Quando o amadurecido Eudóxio voltou à Academia, já então como erudito renomado, com seu séquito próprio de alunos, começou a trabalhar num modelo do cosmos que devia ser ao mesmo tempo platonicamente agradável e empiricamente defensável. Nesse modelo, o universo era composto de esferas concêntricas que cercavam a Terra, também uma esfera [8]. Isso teria satisfeito Platão, que considerava a esfera como "o mais perfeito" dos sólidos geométricos, por ter o mínimo possível de superfície em relação ao volume de espaço que encerra. Mas o universo de Eudóxio devia enquadrar-se melhor nos fenômenos observados, e essa aspiração exigia complexidade. Ao cosmos esférico simples, proposto por Parmênides um século antes, Eudóxio acrescentou mais esferas. As novas esferas influenciavam os movimentos do Sol, Lua e planetas, alterando suas orbitas e velocidades, e, ajustando os seus índices de rotação e a inclinação de seus eixos, Eudoxio verificou que podia explicar, mais ou menos, o movimento retrogrado e outras complexidades do movimento celeste. Foram necessárias 27 esferas para isso. Era mais do que Platão teria gostado, mas correspondia um pouco mais de perto aos dados do que os modelos anteriores. A hegemonia da beleza pura, abstrata, tinha começado o seu lento recuo ante o ataque obstinado, insistente, do mundo material.

 

Em última análise, porém, até mesmo um cosmos complexo como o de Eudoxio mostrava-se inadequado. Os dados eram constantemente aperfeiçoados - com a conquista da Babilônia por Alexandre, o Grande, em 330 a.C., os gregos tiveram acesso aos seus registros astronômicos, que antes não estavam ao seu alcance, ao mesmo tempo que continuavam a fazer observações próprias, pelo menos intermitentes - e o modelo de Eudóxio não explicava as sutilezas reveladas por essas informações mais amplas e refinadas. Começou assim um ciclo, semelhante ao da fênix, da ciência, da cosmologia, em que as teorias, por mais grandiosas que fossem, dependiam de dados empíricos que têm o poder de destruí-las.

 

O passo seguinte coube, para melhor ou para pior, a Aristóteles. Rotineiramente descrito nos livros didáticos como uma alternativa empirista a Platão, Aristóteles foi, na realidade, dedicado a observação. Diz-se, por exemplo, que ele teria passado sua lua-de-mel recolhendo espécimes da vida marinha. Mas era também amigo da exploração e não tolerava ambigüidades, qualidades que não são salutares na ciência. Filho de um médico, herdou o hábito que têm os médicos de se mostrarem confiantes e tranqüilizantes ante todas as perguntas ansiosas dos pacientes. Se pressionado, essa tendência o tornava crédulo (as mulheres, disse ele, têm menos dentes do que os homens) e o levava a extremos de categorização  ociosa, como ao observar que: "os animais devem ser divididos em três partes, uma pela qual o alimento é ingerido, outra pela qual o excremento é expelido e uma terceira sendo a região intermediária entre essas duas."[9] Aristóteles escreveu e ensinou lógica, retórica, poesia, ética, economia, política, física, metafisica, história natural, anatomia, fisiologia e condições climáticas, e o seu pensamento sobre muitos desses assuntos foi sutil como o orvalho, mas não era homem a cujos lábios acorresse com facilidade a frase "Eu não sei", Tudo o que sua mente tocava, ao mesmo tempo esclarecia e anestesiava.

 

Ninguém gosta, realmente, de um homem que sabe tudo, e Aristóteles tornou-se a primeira vítima conhecida da política acadêmica. Embora fosse aluno da Academia e seu professor mais célebre, e claramente o melhor qualificado para substituir Platão como seu diretor, foi duas vezes preterido. Tomou, então a única atitude satisfatória para um homem da sua estatura, e foi lecionar em outra instituição. Como não havia nenhuma outra instituição acadêmica, foi obrigado a criá-la, e assim teve origem o Liceu.

 

Quando chegou a sua vez de manifestar-se sobre a estrutura do universo, Aristóteles baseou seu modelo nas esferas celestes de Eudóxio, a quem estimara na Academia pelo seu caráter moderado, bem como pelos seus feitos ímpares  na astronomia. Como seu assistente de pesquisa no projeto de cosmologia, Aristóteles escolheu o astrônomo Calipo, natural da terra adotiva de Eudóxio, Cízico. Juntos, Aristóteles e Calipo produziram um modelo - consistente, simétrico, expansivo e belo de ser visto - que se inclui entre as mais excitantes das muitas cosmogonias errôneas da história. Incluído no livro De Caelo (Dos céus) de Aristóteles, iria seduzir, e induzir ao erro, o mundo durante vários séculos. Não há necessidade de nos determos em seus detalhes: consistiam principalmente de esferas superpostas e de ajustes em seus parâmetros, com o resultado de que o universo passava a ter 55 esferas brilhantes e translúcidas. Além da esfera mais exterior. Aristóteles sustentava, com base em estranha epistemologia, que nada podia existir, nem mesmo o espaço. No centro ficava uma Terra imóvel, o brilhante diadema do modelo e seu erro fatal.

 

Frente a uma inevitável disparidade entre a teoria e a observação, os cosmólogos que trabalhavam a partir da hipótese geocêntrica não tinham outra escolha senão continuar a tornar seus modelos cada vez mais complicados. E assim a cosmologia foi levada a um labirinto de epiciclos e excentricidades no qual permaneceria enredada durante mais de mil anos. O virtuoso dessa exploração foi Cláudio Ptolomeu.

 

Nasceu ele no século II, em Prolemaida, sobre o Nilo, e o financiamento de seus estudos astronômicos foi feito pela dinastia dos Ptolomeus, através do museu de Alexandria. Quaisquer que fossem as suas deficiências - e muitas se evidenciaram, inclusive provas de que ele falsificou alguns dados -, foi um astrônomo prático, e não um teórico de gabinete. Mapeou as estrelas a partir de um observatório em Canopo, a cidade com o nome de uma estrela, situada a cerca de 25 km a leste de Alexandria, e conhecia a refração e a extinção atmosféricas e muitas outras tribulações que perseguem o observador cuidadoso. Deu à sua principal obra cosmológica o nome de Sintaxe Matemática, significando isso “a composição matemática", mas ela nos chegou com o nome de Almagesto, ou seja, “o maior” em árabe. O que ele fez de maneira esplêndida foi prever os movimentos do Sol, da Lua e das estrelas com mais precisão do que seus antecessores.

 

Os epiciclos e os excêntricos pelos quais Ptolomeu buscou conciliar a teoria e a observação tinham sido introduzidos pelo geômetra Apolônio de Perga e aperfeiçoados pelo astrônomo Hiparco. Os epiciclos eram pequenas órbitas circulares impostas sobre as órbitas dos planetas: se um planeta, para Aristóteles, circulava a terra como um elefante preso a uma corda, o mesmo planeta, para Ptolomeu, descrevia a órbita de uma pedra atada a uma corda, lançada pelo homem que montava o elefante. Os excêntricos melhoraram a adequação entre a página escrita e o céu noturno, transferindo o centro presuntivo das várias es- feras celestes para um lado do centro do universo. A esses movimentos Ptolomeu acrescentou outro, o movimento circular realizado pelo centro das esferas planetárias. O poste da corda do elefante entrava agora, ele próprio, em órbita em torno do centro do universo, arrastando todo o sistema de esferas e epiciclos de um lado para outro, de modo que os planetas podiam aproximar-se e afastar-se da Terra.

 

O sistema era deselegante - perdera quase toda a simetria que tornava as esferas celestes do agrado da estética de Aristóteles - mas funcionava, mais ou menos. Girando e zumbindo, o universo ptolomaico podia prever quase todos os movimentos planetários observados - e quando não o previa, Ptolomeu manipulava os dados para que se ajustassem. Em sua elaboração, e nas elaborações que astrônomos posteriores foram obrigados a fazer, o sistema fazia previsões suficientemente exatas para manter sua reputação como “o maior" guia dos movimentos celestes, desde a época de Ptolomeu até o Renascimento.

 

O preço pago pelos seguidores de Ptolomeu pela precisão adquirida por seu modelo foi esquecer a pretensão de que ele representasse a realidade física. O sistema ptolomaico passou a ser considerado não como um modelo mecânico do universo, mas como uma ficção matemática útil. Todas aquelas rodas dentro de rodas não existiam realmente no espaço - tal como, por exemplo, as linhas geométricas de limites registrados na repartição alexandrina de terras não representavam linhas reais traçadas nas propriedades inundadas ao longo do Nilo. Como observou Proclo, um neoplatônico do século V: “Esses círculos existem apenas no pensamento... Explicam os movimentos naturais por meio de coisas que não tem existência na natureza.”[10] O próprio Ptolomeu achava que as complexidades do modelo simplesmente refletiam as encontradas no céu; se a solução foi deselegante, foi deselegante, disse ele, também o era o problema:

 

Enquanto nos limitarmos a esses modelos que montamos, julgaremos a composição e sucessão dos vários movimentos desajeitada. Organizá-los de modo que cada movimento possa ser realizado livremente, não parece possível. Mas quando estudamos o que acontece no céu, não somos perturbados por essa mistura de movimentos.[11]

 

 O objetivo da teoria não era, portanto ,retratar o mecanismo real do universo, mas simplesmente, “salvar as aparências”. Muito já se ridicularizou essa visão e grande parte de tal ridículo as expensas de Ptolomeu, mas a ciência de hoje recorre com freqüência a abstrações intangíveis. O "continuum espaço-tempo" descrito pela teoria geral da relatividade é um desses conceitos, e também o é o número quântico chamado de "isospin",e não obstante, ambos tiveram muito êxito na previsão e na explicação de acontecimentos observados no mundo. Devemos dizer, em defesa de Ptolomeu, que ele pelo menos teve a coragem de admitir as limitações de sua teoria. A frase “salvar as aparências" é de Platāo, e sua ascensão, através do universo ptolomaico, foi uma acentuada vitória do idealismo platônico e uma derrota da dedução empírica. Platão compartilhava com seu mestre Sócrates de um profundo ceticismo sobre a capacidade que tem a mente humana de compreender a natureza pelo estudo dos objetos e acontecimentos. Como Sócrates disse ao seu amigo Fedro enquanto caminhavam às margens do Ilisso: “ Ainda não posso 'conhecer-me a mim mesmo', como manda a inscrição em Delfos, e enquanto perdurar essa ignorância, parece-me absurdo indagar sobre matérias estranhas."[12] Entre essas "matérias estranhas" estava a estrutura do universo. Aristóteles amava Platão, que não parece ter retribuído a devoção com a mesma intensidade: suas discordâncias iam além da filosofia e chegavam aos de- talhes do estilo. Platão vestia-se com simplicidade, ao passo que Aristóteles usava roupas elegantes, anéis de ouro e penteados caros. Aristóteles gostava dos livros; Platão desconfiava dos homens que eram demasiado literários.[13] Com um toque da ironia que sobreviveu séculos, Platão chamava Aristóteles de “o cérebro". 

 

         Aristóteles, apesar de todas as suas tendências empíricas, nunca perdeu o apego à beleza das imortais formas geométricas de Platāo. Seu universo de esferas lúcidas foi um tipo de céu na terra, onde seu espírito, e o de Platāo, podiam viver juntos em paz. Nem a ciência, nem a filosofia, conseguiram ainda ter êxito onde Aristóteles falhou. Em conseqüência, sua sombra, e a de Platāo, continuam a disputa, nas páginas das revistas filosóficas e científicas, e em milhares de laboratórios e salas de aula. Quando os filósofos da ciência lutam hoje com problemas como saber se as partículas subatômicas se comportam de maneira determinista, ou se o espaço-tempo de dez dimensões representa a verdadeira arquitetura do antigo universo ou se é apenas um recurso de interpretação, estão, num certo sentido, ainda tentando celebrar a paz entre o homem de ombros largos e seu brilhante e ousado discípulo,"o cérebro".                                                        



[1] -. Copérnico, Das revoluções. P 510.

[2] - Hesíodo, Os trabalhos e os dias, p. 78.

[3] - In Williamson, 1984,p. 297.

[4] - Ibid, p. 210.

[5]  - In Morison, 1963,p.362.

[6] - Esse fenômeno, chamado de precessão dos equinócios, era conhecido dos gregos antigos e pode ter sido descoberto antes deles. Georgio de Santillana, em seu livro Hamlet's Mill, o identifica com o mito antigo de Amlodhi (mais tarde Hamlet), dono de um gigantesco moinho de sal que foi para o fundo do mar ao ser transportado de navio. O moinho continuou a trabalhar, criando um redemoinho que lentamente faz girar os céus. Quer descreva ou não a precessão, o mito do moinho de Hamlet certamente perdura; eu o ouvi pela primeira vez aos 9 anos de idade, num pátio de escola rural na Flórida, de uma menina que explicava por que o oceano é salgado.

[7] - In Wycherley, 1978,p.222.

[8] - Na época de Eudóxio ,todos os gregos cultos admitiam ser a Terra esférica, à base de evidencias como a forma da sombra que ela projeta sobre a Lua, durante os eclipses lunares.

[9] - Aristóteles, Da juventude,2,14, in Barros, 1984.

[10] - In Duhem, 1969, p. 19.

[11] - Ibid.,p. 17.

[12] - Platão, Fedro, 230a, in Hamilton and Cairns, ed., 1969.

[13] - No Fedro, de Platāo, Sócrates conta uma velha história de como o lendário rei Tamos, do Egito, recusou a oferta do deus Teute de ensinar aos seus súditos a escrever. “O que descobriste é uma receita não para a memória, mas para a lembrança" diz o rei Tamos. "E não é a verdadeira sabedoria que ofereces aos teus discípulos, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois dizendo-lhes muitas coisas sem ensina-las, vais dar-lhes a aparência de saberem muito, quando em sua maioria eles nada sabem, e como homens imbuídos, não de sabedoria, mas da pretensão de sabedoria, serão um aborrecimento conhecimento. Esta continua sendo uma das denúncias mais proféticas dos perigos da alfabetização, jamais feitas – embora, é claro, seja graças à palavra escrita que dela temos conhecimento.