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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Moral, Ética e Metaética





1. Introdução
Hoje muito se fala em Ética. Ética empresarial, ética médica, ética advocatícia, Códigos de Ética, entre tantos outros exemplos.

É também muito comum ouvir dizer que uma pessoa, um espetáculo ou um programa de tv é algo que não tem moral, principalmente quando possui um apelo sexual ou uma atitude ou opinião diferente do que determina uma crença religiosa.

Contudo, tecnicamente, percebe-se que, quase sempre o que se está a fazer é atribuir significados equivocados a respeito da moral e da ética, arrogando a esses termos um campo semântico que não lhes pertence. Isso porque se referem à ética enquanto, na verdade, o que estão a dizer é algo sobre a moral, e quando classificam determinado objeto como moral ou imoral estão a atribuir acepções pejorativas ao termo.

Por isso, a fim de ajudar a esclarecer aos leitores sobre a real semântica dessas palavras, posto aqui esta breve conceituação da Moral, da Ética e da Metaética.

2 – A Moral

A moral é o corpo de preceitos e regras que dirigem o comportamento dos homens segundo conceitos de justiça e de equidade. Esse corpo forma os costumes e estabelece o modo de proceder do homem nas relações com seu semelhante.

Durkheim explicava Moral como a “ciência dos costumes”, sendo algo anterior a própria sociedade.

Já Vasquez conceitua que Moral é um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livres e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal.

A Moral estabelece regras que são assumidas por uma sociedade, como uma forma de tentar garantir o seu bem-viver.

Podemos tentar resumir a linguagem prescritiva com que a moral trabalha através do esquema abaixo, onde se verifica que basicamente ela trabalha com imperativos de linguagem e juízos de valor.


Contudo, os sistemas morais criados pelas comunidades não se prendem a uma fundamentação racionalmente construída, de forma laica ou até mesmo com critérios racionais de justiça.

A análise da construção desses sistemas morais caberá à Ética, a qual se passará a explicar mais adiante.

Diante disso, a corrente mais aceita atualmente na conceituação da moral, é a que define moral como sendo os sistemas variáveis de normas e valores estudados pela ética (disciplina autônoma da filosofia), caracterizados por organizarem a vida das múltiplas comunidades humanas, diferenciando e definindo comportamentos proscritos, desaconselhados, permitidos ou ideais.

Portanto, usar a palavra moral como antônimo de devasso ou libertino, é fazer uso pejorativo do termo. Pois dizer que uma coisa não tem fundamento moral é dizer simplesmente que a construção de determinada norma, preceito ou valor foi refutado pela ética por não ter uma fundamentação suficiente.

3. A Ética

Um dos filósofos mais respeitados da atualidade, Dr. Richard M. Hare
[1], conceitua a Ética de forma clara e objetiva. Ele afirma que Ética é a Filosofia da Moral. Ela é o estudo da moral.

Isso quer dizer, conforme ressaltado anteriormente, que a Ética é uma ciência. É uma disciplina autônoma da Filosofia, um ramo da Filosofia. Assim como a Metafísica, a Filosofia da Linguagem, a Filosofia do Direito, a Filosofia Política, entre outras disciplinas filosóficas.

A ética é então, a parte da Filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, de suas causas motoras, eficientes e teleológicas. É a investigação dos valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social.

Em outras palavras é dizer que ela é o estudo dos significados e das propriedades lógicas das palavras morais. E ela faz isso analisando se os argumentos morais são bons ou ruins a partir da lógica dos discursos e da análise da definição das palavras e de seu significado.

O principal objetivo da Ética é a busca de justificativas para as regras propostas pela Moral. A ética não estabelece regras. Ela julga as regras, dizendo se as mesmas têm ou não condições lógicas de verdade.

Por isto, não é tecnicamente correto dizer, por exemplo, que a Ordem dos Advogados do Brasil conta com um Código de Ética, pois é um equívoco. O que nossa ilustre instituição possui, é um bem elaborado Estatuto de Condutas Morais do Advogado, ou simplesmente, Código Moral do Advogado.

Assim, é perfeitamente possível que a ética, sendo uma ciência que estuda as condições lógicas das verdades e dos discursos morais, se aplicada a algum dispositivo do conhecido “Código de Ética” da OAB, possa concluir que o dispositivo analisado não tem fundamento moral e não merece prevalecer. O mesmo poderia acontecer se determinada norma da ética empresarial ou da ética médica fosse submetida ao rigoroso crivo da ciência ética.

Seria tecnicamente correto dizer, ao contrário, que existe uma ética empresarial, uma ética médica ou uma ética advocatícia, desde que elas impliquem em compreender as filosofias morais adotadas pelas respectivas áreas profissionais, como também reconhecer como elas são modificadas ou bloqueadas pelas empresas, médicos ou advogados, mas não é isso que elas geralmente fazem, pois quase sempre apenas estipulam normas de conduta sem se vincularem necessariamente com uma aprofundada análise ética sobre as mesmas.

Particularmente, acredito que a grande confusão ocorra quando do fenômeno da ética normativa. E creio que isso se dá porque a ética normativa busca estabelecer princípios constantes e universalmente válidos, definindo o bom ou o ruim moral como o ideal do melhor agir ou do melhor ser. Ela acontece quando a ética está a analisar os juízos morais (ética aplicada) e acaba por emitir uma conclusão se eles deverão ou não prevalecer, o que leva à falsa impressão de que a ética está livremente criando as regras. Contudo, quando a ética normativa age sobre determinado objeto, como, por exemplo, a proibição do aborto ou a reserva de cotas raciais nas universidades, ela está, a partir de determinada corrente ou princípio, concluindo se aquela ou esta determinação tem fundamentos morais, se tem condições lógicas de verdade. Ela não trabalha determinando a conduta como faz a moral que apenas prescreve o que lhe é de interesse, e por isso, a ética quase sempre cai no relativismo, possibilitando que outra corrente ética chegue a uma conclusão diferente sem necessariamente estar totalmente errada.

É nesse momento que se faz necessário a metaética (qual se falará adiante) para verificar o que a ética está a fazer. Ela verificará quais os caminhos do discurso lógico a ética está usando para verificar as condições de verdade das afirmações morais.

4. Metaética

O termo meta anexado na palavra não tem aqui a mesma etimologia da palavra meta que usamos no nosso dia a dia como um ponto a ser alcançado. Esta última origina-se do latim cujo significado mais indicado é marco. Inclusive era meta o nome do marco que indicava o termo das corridas de cavalo na antiga Roma. Já Aquela que será tratada, origina-se do grego, cujo significado é a idéia de algo que está além, sobre ou mais adiante, assim como na palavra metáfora, que é a frase cujo significado está além daquilo que se está materialmente a dizer, ou ainda na metafísica, que trata a respeito daquilo que é supra-sensível.

É neste ponto que a metaética está, ou seja, está sobre a ética, além da ética.

Isso porque enquanto as teorias éticas (também chamadas teorias de 1ª ordem) estão a formular juízos éticos, as teorias metaéticas (teorias de 2ª ordem) realizam a reflexão dos próprios juízos éticos, refletindo sobre os tipos de afirmações éticas que as teorias de 1ª ordem estão a fazer.

A metaética nada julga, nada prescreve, nada afirma. Ela faz simplesmente uma verdadeira taxonomia das reflexões éticas, ou seja, ela faz a identificação e a classificação das prescrições éticas. Ela age como se fosse um espectador observando duas pessoas a debater, por exemplo, sobre política, e analisando a linha de discurso usada por cada um, classifica se esse ou aquele discurso é de esquerda ou de direita.

Esta taxonomia está organizada basicamente em dois gêneros que comportam, cada uma, duas espécies de doutrinas bem distintas. Sendo o gênero descritivista, qual contém as espécies, naturalista e intuicionista, e o gênero não-descritivista, formado pelo emotivismo e pelo racionalismo. Da seguinte forma:



Para discorrer sobre cada uma dessas correntes teóricas seria necessário um outro artigo (que eventualmente será feito) e em razão disso não será realizada aqui esta tarefa. Mas para que se possa compreender como as análises éticas são classificadas dentro dessas teorias, será apresentado o seguinte exemplo:

Certa vez, no jornal a Folha de São Paulo, um jornalista, criticando a criação de cotas raciais nas universidades, escreveu que, uma vez que é comprovado cientificamente pela biologia que não existem raças humanas, a criação de cotas raciais seria algo sem fundamento moral.

Aplicando a metaética nesse discurso, é possível classificar o pensamento ético do jornalista como sendo um descritivista naturalista.

Isso porque o naturalismo ao analisar as condições de verdade de um discurso, avalia se o significado das asserções morais corresponde às propriedades materiais que as coisas a que tais asserções dizem respeito possuem. Ele parte de premissas contendo fatos materiais tais como, o fato da ciência biológica comprovar que não existem raças humanas.

Se aquele fosse um discurso que estivesse levando em conta outras propriedades como a discriminação das pessoas de uma ou outra cor de pele pela sociedade, ele se enquadraria em outra classificação, e assim por diante.

5. Conclusão

Por fim, espera-se que o trabalho tenha cumprido o seu objeto de esclarecer em breves palavras, uma conceituação do que vêm a ser a moral, a ética e a metaética, de um ponto de vista técnico-filosófico, evidenciando suas principais diferenças.

Sugere-se, que aqueles que se interessem pelo assunto e queiram compreender melhor e mais profundamente o assunto, que realizem o estudo desses dois livros da obra do filósofo Richard M. Hare: “A Linguagem da Moral” e “Ética, Problemas e Propostas”, sendo o primeiro publicado pela Editora Martins Fontes e o segundo pela editora da UNESP. Ambos podem ser facilmente encontrados.


[1] - Professor de Filosofia da Universidade Oxford, UK, de 1966 a 1983 e atualmente docente da Universidade da Flórida, Gainesville, USA.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

A aplicação do Elenchos Socrático no Diálogo "Laques"


1.Introdução

Numa Palestra, ou Ginásio públicos
[1] de Atenas, acontece uma exibição de hoplomaquia[2] protagonizada por Estesilau, um renomado mestre desta disciplina. [3]

Lisímaco convida um grupo de amigos para assistir a exibição de Estesilau, dentre os quais estão, Melésias, amigo muito próximo com quem costuma tomar as refeições, Laques e Nícias. Faz o convite a pretexto de obter respostas quanto ao caráter educativo da hoplomaquia, informação esta que busca com a real finalidade de saber qual seria a melhor educação para aplicar aos seus filhos que estão adentrando a juventude, motivos estes que só revelará ao final da apresentação.
Tanto Lisímaco como Melésias, são filhos de homens de grandes prestígios. O pai de Lisímaco, Aristides, segundo nota do tradutor, embora fosse de família não muito abastada, participou das batalhas de Maratona e Salamina. Muito ativo nos assuntos políticos, foi rival de Temístocles. Ocupou também cargo de Arconte[4] e de Estratego[5]. Já o pai de Melésias, Tucídides, foi homem de grande riqueza e prestígio. Também envolvido com assuntos políticos, foi opositor de Péricles, a quem acusava de dilapidar os bens públicos em obras luxuosas.

Embora tendo como pais, homens de grandes feitos, Lisímaco e Melésias eram cidadãos um tanto quanto comuns, sem nenhum tipo de feito memorável. E transmitem a impressão de que assimilaram isso como uma espécie de “trauma”, devido aos pais ter os deixado, durante a juventude, na boa vida ao sabor dos passatempos, não lhes impondo uma educação rigorosa. Esta perspectiva faz com que Lisímaco e também Melésias tornem-se pais muito preocupados com a educação dos filhos, tendo eles o interesse em conhecer de fato, qual a melhor forma de educação deve-se prescrever aos filhos jovens, para que os mesmos tornem-se homens de grandes virtudes e feitos, razão essa que enseja a reunião.

Quanto aos convidados, Nícias e Laques, ambos eram generais de guerra e ilustríssimos homens. Eram também admiradores de Sócrates, seja pelos seus feitos militares, seja pelo seu discernimento com relação à boa educação.

Iniciado o debate acerca da importância da hoplomaquia e seus benefícios para a educação dos jovens, surgem opiniões contrárias entre Laques e Nícias a esse respeito, inclusive tendo Laques realizado uma observação curiosa, a de que os espartanos não se interessam pela hoplomaquia, embora sejam eles famosos por sua forte inclinação bélica, sendo um povo extremamente interessado em tudo o que é belicoso.

Diante da contenda, Sócrates, que é querido por todos os presentes, é convidado a integrar o debate. Ele introduz à discussão um enfoque às virtudes e a presença delas na saúde psíquica, “na alma”, dos jovens, tornando-os melhor, e a partir desse enfoque, concordam que do aprendizado das armas a virtude que aponta com maior ênfase é a coragem (andreía), qual passa então a ser o tema central do debate.

Assim, iniciando a investigação sobre o que é a coragem, Sócrates passa então a aplicar seu método filosófico-investigativo na busca da verdade: o Elenchos, qual será definido e terá sua aplicação analisada, sendo este o objeto do presente trabalho.

2 – Definição e forma de aplicação do Elenchos

O Elenchos é um método dialético que tem por objeto não apenas a simples refutação do interlocutor naquilo que ele supõe saber, fazendo-lhe o bem
[6] de conscientizá-lo sobre sua ignorância. Ele é instrumento, sobretudo, de busca pela verdade. Nos dizeres de Dorion (1997, p. 30): “é o teste, a prova que tem por fim verificar e colocar à luz se o indivíduo possui bem as qualidades (morais ou intelectuais) que ele pretende possuir”.

O método se realiza através do Silogismo e da Epagogé, extraindo do interlocutor definições das coisas que ele acredita saber, demonstrando que tais definições são contraditórias a outras opiniões por ele admitidas.

A Epagogé, termo grego que significa, de certo modo, “conduzir”, além de ser usada para refutação de definições já concebidas, é usada também como uma fase prévia à construção de premissas e definições a serem submetidas ao trabalho dos silogismos. Sócrates a usa principalmente quando os interlocutores, como por exemplo, Laques, têm certa carência de habilidade na construção do raciocínio lógico sobre uma definição do tema abordado que, no caso do texto é a coragem.

Na aplicação da Epagogé, para refutar premissas e definições ou construí-las, Sócrates apresenta exemplos sucessivos que são análogos entre si. Por exemplo, no diálogo com o personagem Laques, Sócrates usa da Epagogé para conseguir dele, uma definição universal do que é a coragem (de 190 e à 192 c), conforme analisado a seguir na aplicação do método tendo como interlocutor o próprio general Laques.

2.1 – A aplicação do Elenchos com interlocução de Laques

Ao ser interpelado para que exponha uma definição de coragem, Laques começa dizendo que a coragem é, na linha de combate, enfrentar o inimigo a pé firme, em vez de recuar. Mas Sócrates usa exemplos análogos entre si, usando a epagogé para demonstrar a Laques que aquilo que ele deseja obter, é uma definição de coragem que seja válida para qualquer situação e não só nos ataques da infantaria, conforme a seguir:

a) Exemplifica com o povo Cita, qual usa uma estratégia de combate em cavalaria que consiste em manter-se em recuo até o momento oportuno a uma investida, não com descoragem, mas sim com prudência;

b) Exemplifica também com a infantaria dos espartanos que, diferente da forma de combate com infantaria que Laques referiu-se, nem sempre combate a pé firme e na batalha de Platéias, recuou perante os geróforos, e posteriormente, diante de uma oportunidade passou à investida e venceu a batalha;

c) Toma como exemplo, as doenças, os prazeres, os desejos, demonstrando que a coragem também existe perante tais situações;

d) Ilustra por fim, definindo velocidade, não só a velocidade existente nas corridas, mas a velocidade de forma universal, como sendo a capacidade de muito realizar em pouco tempo, tudo isso a fim de conduzir o raciocínio de Laques a dar-lhe uma definição universal do que é a coragem.

Diante dos exemplos, Laques então apresenta sua definição: A coragem é a perseverança da alma.

Essa definição terá sua veracidade analisada por Sócrates dentro de um silogismo e posteriormente refutada, usando de premissas que, se aceitas, levará o interlocutor a contradizer a definição apresentada, conforme se verificará a seguir:

a) Sócrates questiona a Laques se ele está de acordo com a qualificação de que a coragem é algo realmente belo e bom, o que é imediatamente aceito.

b) Depois questiona se a perseverança acompanhada de sensatez pode ser considerado algo belo e bom, Laques responde afirmativamente.

c) Pergunta então o contrário, se a perseverança acompanhada de insensatez é algo prejudicial e mau; Laques concorda.

d) Sócrates então demonstra que o resultado de tais perguntas indicam que não pode ser bela e boa uma perseverança que é má e prejudicial, portanto a coragem não pode ser apenas perseverança e sim perseverança acompanhada de sensatez, fato que Laques concorda.

Assim, Sócrates refutou a primeira definição de coragem apresentada por Laques conduzindo-o a formar uma nova definição, ou seja, que nem toda perseverança é coragem, e sim, que perseverança somada a sensatez é coragem.

Contudo, dessa nova definição, Sócrates iniciará uma Epagogé que a refutará, um exemplo claro da Epagogé sendo usada para refutar definições e não para estabelecê-las.

Sócrates apresenta nessa nova Epagogé, exemplos que farão com que Laques concorde que pode haver coragem mediante perseverança somada à insensatez, diferentemente do que ele afirmou anteriormente. Veja-se alguns dos exemplos usados:

a) Sócrates sugere que um homem que persevera em gastar dinheiro com senso, sabendo que depois de gasta-lo ganhará mais, é menos corajoso que um homem que gasta sem ter certeza que ganhará posteriormente.

b) Também demonstra que um homem que luta com senso na guerra contra inimigos menos numerosos e ciente de que terá ajuda dos seus aliados é menos corajoso do que aquele que sozinho em campo inimigo ousa resistir e lutar.

c) exemplifica que aquele que persevera em lutar num combate de cavalaria com ciência de equitação é menos corajoso do que aquele que o faz sem ciência e que o mesmo acontece com quem combate com arcos. E além desses, aquele que se arrisca a mergulhar num poço sendo especialista em tal proeza é também menos corajoso do que aquele que o faz sem tal especialidade.

Laques concorda e, desse modo, tem refutada com essa epagogé, sua definição de coragem como sendo perseverança com sensatez, pois demonstrado que há coragem também com perseverança acompanhada de insensatez e ainda, que algo insensato e prejudicial não poderia ser belo e bom como havia Laques concordado no início.

Completamente perdido e confuso, Laques admite não saber o que é coragem e portanto, na aplicação do Elenchos com o Laques, chega-se a uma aporia, e Sócrates então passa a aplicá-lo ao Nícias.

2.2 – A aplicação do Elenchos com interlocução de Nícias

Ao ser interpelado, Nícias apresenta imediatamente sua definição do que é a coragem: a ciência do que é perigoso e do que é favorável, tanto na guerra como em qualquer outra circunstância.

Perante tal definição, Laques se antecede a Sócrates e tenta, de forma precária, aplicar o Elenchos ao colega Nícias, usando de um silogismo deficiente. Contudo ao apresentar suas premissas não obtém de Nícias respostas de concordância, tal como no momento em que, aproveitando-se de uma observação de Sócrates a respeito da eventual existência de coragem em animais, pergunta se Nícias concorda que os animais são corajosos, e é imediatamente contestado por ele, que não concorda em atribuir coragem aos animais ou qualquer ser humano que, por falta de entendimento não receie ao perigo, e os reconhece como temerários e loucos.

Essa passagem demonstra que o desfecho do Elenchos só é possível quando o interlocutor está de acordo com as premissas e exemplos apresentados no silogismo e na epagogé.

Retomando Sócrates a investigação do tema com Nícias, inicia-se o processo de refutação daquela definição apresentada, repita-se: coragem é a ciência do que é perigoso e do que é favorável, tanto na guerra como em qualquer outra circunstância.

O filósofo agora realizará um silogismo que se apresenta com maior complexidade por conter uma epagogé em seu interior. Observe-se.

a) Sócrates inicia o silogismo estabelecendo a definição de perigoso como sendo aquilo que causa temor e este, obviamente é a expectativa de um mal futuro; define também que favorável é a ausência desse temor futuro;

b) após, realiza então uma epagogé para estabelecer a premissa que a ciência não abarca apenas o futuro, mas também o passado e o presente, afim de avaliar as possibilidades futuras. Para isso usa como exemplo, a medicina, que ao investigar os antecedentes, os sintomas e a evolução das coisas referentes à saúde, é sempre a mesma, não existindo uma ciência separada para cada um desses momentos. Outros exemplos que também usa são; o da agricultura que daquele modo atua com relação às coisas referentes ao plantio, e do estratego na guerra, que age da mesma forma, estudando os antecedentes, os fatores e a evolução das coisas da guerra, a fim de avaliar os acontecimentos futuros e assim montar a melhor estratégia de combate. Assim, estabelece esta premissa, a de que a ciência que avalia o futuro, o passado e o presente é sempre a mesma;

c) de posse dessas premissas, Sócrates então refuta a definição dada pelo amigo Nícias, dizendo que a coragem não pode ser a ciência do que é perigoso e do que é favorável, pois o perigoso e o favorável abarcam apenas o futuro com relação ao bom e ao mal, enquanto a ciência, a exemplo das outras, abarca também o passado e o presente. Assim, se a coragem fosse como Nícias apresenta, seria capaz de determinar o bem ou o mal em todas as circunstâncias, não seria apenas uma parte da virtude como concordam todos os personagens, porque para tanto, a pessoa que soubesse o que é a coragem, para determinar o bem ou o mal em todos os momentos, seja futuro, passado ou presente, necessitaria também de estar de posse da prudência, da justiça, da piedade e de todas as outras partes da virtude, e não apenas da coragem.

3 – Conclusão

Investigadas e refutadas todas as definições apresentadas pelos personagens interlocutores Laques e Nícias, chega-se então a uma aporia, ou seja, a uma ausência de certeza filosófica definitiva para a questão inicial apresentada, qual seja; o que é a coragem?

Destarte, todos acordaram que, de fato, não conseguiram descobrir o que é a coragem e Sócrates, mais uma vez, realizou aquilo que ele entende ser o melhor bem que se pode fazer a uma pessoa: conscientiza-la da própria ignorância.


[1] - palestra ou ginásio, eram lugares de exercícios desportivos, quais, inclusive, Sócrates costumava freqüentar para que tivesse a oportunidade de se encontrar com a juventude.

[2] - trata-se de uma modalidade de luta armada, naturalmente ensinada por sofistas. Um exercício de esgrima no qual o atleta combate com couraça, grevas, elmo, escudo, espada e lança. O praticante da hoplomaquia é denominado hoplita.

[3] - embora em 183c à 184b, Laques relate com certo desprezo irônico uma ocasião em que o hoplita Estesilau, embarcado em uma trirreme, embaraçou sua lança com ponta de foice na embarcação do inimigo sendo arrastada por aquela, ensejando risos, não só na embarcação inimiga como também na trirreme que tripulava.

[4] - Magistrado com poder de legislar.

[5] - general do exército na antiga Atenas (Grécia), eleito anualmente pelo povo para ser um dos dez magistrados com poderes para cuidar especialmente das medidas de natureza militar.
[6] - Sócrates entende que o maior bem que sua filosofia pode fazer pelos seus interlocutores é conscientiza-los de sua própria ignorância, mostrando-os que, na verdade, não possuem a sabedoria que supõe saber e que só a partir desta conscientização da própria ignorância, o homem estará habilitado para iniciar sua busca pelo conhecimento verdadeiro.