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sábado, 18 de dezembro de 2021

CUBA - Quando o Extraordinário se Torna Cotidiano (extraído de Cartas a Che Guevara)

As orientações do Che dominaram o primeiro projeto de construção do socialismo em Cuba. Sua visão associada da política, da moral e da economia fez com que ele, em primeiro lugar, pensasse na industrialização como o caminho econômico para a soberania de Cuba no cenário internacional. Para tanto, conseguiu maquinaria suficiente nos ex-países do Leste europeu, porém como a industrialização não se reduz a isso, mas inclui, entre outros pré-requisitos, mão-de-obra qualificada, tecnologia, acesso a matérias-primas, canais de comercialização e formas de financiamento, aquela maquinaria praticamente não chegou a ser utilizada. 

Seu apelo no discurso de Argel em 1965, para que os países socialistas funcionassem como uma espécie de substitutos da acumulação primitiva de capital para os países atrasados, resgatava as dificuldades cubanas para romper o círculo de ferro de país primário exportador que, de alguma forma, não conseguiu superar. A integração à comunidade econômica socialista foi feita com base nas vantagens comparativas de Cuba - açúcar, cítricos, fumo, níquel - e, embora representassem a possibilidade importante de garantir mercados e petróleo a preços estáveis - esta e não o preço do açúcar vantagem real - ,implicavam manter Cuba como um país sem parque industrial. O peso desse ônus recaiu fortemente sobre os cubanos no momento da desaparição da URSS, quando sua balança comercial ruiu sob o peso da importação de petróleo e outros produtos industriais básicos no mercado internacional, sem poder contar com financiamentos bancários, pela moratória da dívida externa decretada em 1985. 

Em segundo lugar, o Che buscou desde o começo a desmercantilização da economia e da cabeça das pessoas.“...O socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo lutamos contra a alienação. ” Os serviços públicos passaram a ser gratuitos, o trabalho voluntário foi incentivado em detrimento dos incentivos materiais. O Che apostava fortemente na generalização e na prolongação da consciência revolucionária despertada pelo processo de luta pelo poder, porque aquelas medidas supunham que o nível de compromisso político e ideológico da vanguarda se estendesse a amplos setores da população, prolongando aquele momento mágico que ele já havia mencionado com tanta evidência: "Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução”. Essa lua-de-mel revolucionária supunha, por sua vez, a extensão da revolução para outros países da América Lati- na e, eventualmente, da África e da Ásia, sem o que as al- ternativas cubanas se estreitariam - ou um acordo geral com a URSS, com todas as implicações sobre o modelo de sociedade e sobre linha política internacional que isso supunha, ou ficar debilitado diante das pressões norte-americanas, que somavam o bloqueio econômico continental às agressões militares. 

A ida do Che à África e depois à Bolívia estava assim vinculada ao projeto original da revolução cubana, cujo destino se jogava na extensão da revolução. Não era apenas o Vietnã que dependia que se criasse “dois , três, muitos Vietnãs”, mas a própria Cuba. 

O Che não buscava uma revolução na Bolívia mas, valendo-se da localização geográfica daquele país, no coração da América do Sul, catalisar os núcleos de luta armada que surgiam na Argentina, no Brasil, no Uruguai, associando-os aos já existentes na Colômbia, na Venezuela, no Peru e na América Central - na Nicarágua, na Guatemala. Como todo projeto dessa ordem, a vitória leva à consagração, a derrota é catalogada como "aventura", como “desvairio", como “insanidade". A mesma loucura de Bolívar, de Martí, de Zapata, de Sandino, de Fidel, de Mao, de Ho Chi Minh, se derrotados. 

O que do Che sobreviveu ao Che?

A generalização do capitalismo como nunca havia acontecido na história mundial só atualiza e multiplica os temas pelos quais o Che lutou. Uma sociedade na medida do homem, solidária, cooperativa, de homens livres, encontra no grau de desenvolvimento tecnológico um apoio fundamental.“...atrás de cada técnica há alguém que a empunha.” As relações sociais em que se assenta o capitalismo - a produção cada vez mais social e a apropriação cada vez mais privada, centrada na busca permanente do lucro, que encontra no capital financeiro seu paraíso - é que bloqueiam a possibilidade de os homens se tornarem livres e solidários. 

A extensão mundial dos grandes circuitos de comunicação poderia ser o canal da comunicação universal entre os homens, mas torna-se veículo de imposição hegemônica dos que produzem 75% dos programas dos grandes meios de comunicação - os EUA - e que podem subsidiar sua internet em detrimento de um diálogo universal. “... a técnica é uma arma e quem sentir que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser, deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade e, por isso, resgatar a sociedade, para que toda a técnica sirva para a maior quantidade possível de seres humanos e para que possamos construir a sociedade do futuro - qualquer que seja o homem que nós lhe demos-, essa sociedade com que sonhamos, à que nós chamamos, como a chamou o fundador do socialis- mo científico, “o comunismo'.” 

O final do século vê as elites políticas se perpetuarem no poder, apesar da extensão das democracias no mundo. Alternativas revolucionárias são derrotadas ou absorvidas, tendências divergentes assimilam teses de seus adversários. As novas gerações não encontram propostas que respondam à sua disponibilidade e idealismo e se entregam às viagens das drogas e do consumo.

Como reagiriam as novas gerações a um apelo do Che?

“Nós, socialistas, somos mais livres porque mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres. 

“O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-lhe a substância proteica e a roupagem; nós as criaremos. 

“Nossa liberdade e sua sustentação cotidiana têm cor de sangue e estão repletas de sacrifícios. 

"O caminho é longo e em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos. 

“Nós nos forjaremos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica. 

“A personalidade desempenha o papel de mobilização e de direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e enquanto não se afasta do caminho." 

Ou então, para concluir:

"Deixa-me dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor.