Contribua com o projeto e ajude a produzir mais conteúdo!

sábado, 18 de dezembro de 2021

CUBA - Quando o Extraordinário se Torna Cotidiano (extraído de Cartas a Che Guevara)

As orientações do Che dominaram o primeiro projeto de construção do socialismo em Cuba. Sua visão associada da política, da moral e da economia fez com que ele, em primeiro lugar, pensasse na industrialização como o caminho econômico para a soberania de Cuba no cenário internacional. Para tanto, conseguiu maquinaria suficiente nos ex-países do Leste europeu, porém como a industrialização não se reduz a isso, mas inclui, entre outros pré-requisitos, mão-de-obra qualificada, tecnologia, acesso a matérias-primas, canais de comercialização e formas de financiamento, aquela maquinaria praticamente não chegou a ser utilizada. 

Seu apelo no discurso de Argel em 1965, para que os países socialistas funcionassem como uma espécie de substitutos da acumulação primitiva de capital para os países atrasados, resgatava as dificuldades cubanas para romper o círculo de ferro de país primário exportador que, de alguma forma, não conseguiu superar. A integração à comunidade econômica socialista foi feita com base nas vantagens comparativas de Cuba - açúcar, cítricos, fumo, níquel - e, embora representassem a possibilidade importante de garantir mercados e petróleo a preços estáveis - esta e não o preço do açúcar vantagem real - ,implicavam manter Cuba como um país sem parque industrial. O peso desse ônus recaiu fortemente sobre os cubanos no momento da desaparição da URSS, quando sua balança comercial ruiu sob o peso da importação de petróleo e outros produtos industriais básicos no mercado internacional, sem poder contar com financiamentos bancários, pela moratória da dívida externa decretada em 1985. 

Em segundo lugar, o Che buscou desde o começo a desmercantilização da economia e da cabeça das pessoas.“...O socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo lutamos contra a alienação. ” Os serviços públicos passaram a ser gratuitos, o trabalho voluntário foi incentivado em detrimento dos incentivos materiais. O Che apostava fortemente na generalização e na prolongação da consciência revolucionária despertada pelo processo de luta pelo poder, porque aquelas medidas supunham que o nível de compromisso político e ideológico da vanguarda se estendesse a amplos setores da população, prolongando aquele momento mágico que ele já havia mencionado com tanta evidência: "Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução”. Essa lua-de-mel revolucionária supunha, por sua vez, a extensão da revolução para outros países da América Lati- na e, eventualmente, da África e da Ásia, sem o que as al- ternativas cubanas se estreitariam - ou um acordo geral com a URSS, com todas as implicações sobre o modelo de sociedade e sobre linha política internacional que isso supunha, ou ficar debilitado diante das pressões norte-americanas, que somavam o bloqueio econômico continental às agressões militares. 

A ida do Che à África e depois à Bolívia estava assim vinculada ao projeto original da revolução cubana, cujo destino se jogava na extensão da revolução. Não era apenas o Vietnã que dependia que se criasse “dois , três, muitos Vietnãs”, mas a própria Cuba. 

O Che não buscava uma revolução na Bolívia mas, valendo-se da localização geográfica daquele país, no coração da América do Sul, catalisar os núcleos de luta armada que surgiam na Argentina, no Brasil, no Uruguai, associando-os aos já existentes na Colômbia, na Venezuela, no Peru e na América Central - na Nicarágua, na Guatemala. Como todo projeto dessa ordem, a vitória leva à consagração, a derrota é catalogada como "aventura", como “desvairio", como “insanidade". A mesma loucura de Bolívar, de Martí, de Zapata, de Sandino, de Fidel, de Mao, de Ho Chi Minh, se derrotados. 

O que do Che sobreviveu ao Che?

A generalização do capitalismo como nunca havia acontecido na história mundial só atualiza e multiplica os temas pelos quais o Che lutou. Uma sociedade na medida do homem, solidária, cooperativa, de homens livres, encontra no grau de desenvolvimento tecnológico um apoio fundamental.“...atrás de cada técnica há alguém que a empunha.” As relações sociais em que se assenta o capitalismo - a produção cada vez mais social e a apropriação cada vez mais privada, centrada na busca permanente do lucro, que encontra no capital financeiro seu paraíso - é que bloqueiam a possibilidade de os homens se tornarem livres e solidários. 

A extensão mundial dos grandes circuitos de comunicação poderia ser o canal da comunicação universal entre os homens, mas torna-se veículo de imposição hegemônica dos que produzem 75% dos programas dos grandes meios de comunicação - os EUA - e que podem subsidiar sua internet em detrimento de um diálogo universal. “... a técnica é uma arma e quem sentir que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser, deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade e, por isso, resgatar a sociedade, para que toda a técnica sirva para a maior quantidade possível de seres humanos e para que possamos construir a sociedade do futuro - qualquer que seja o homem que nós lhe demos-, essa sociedade com que sonhamos, à que nós chamamos, como a chamou o fundador do socialis- mo científico, “o comunismo'.” 

O final do século vê as elites políticas se perpetuarem no poder, apesar da extensão das democracias no mundo. Alternativas revolucionárias são derrotadas ou absorvidas, tendências divergentes assimilam teses de seus adversários. As novas gerações não encontram propostas que respondam à sua disponibilidade e idealismo e se entregam às viagens das drogas e do consumo.

Como reagiriam as novas gerações a um apelo do Che?

“Nós, socialistas, somos mais livres porque mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres. 

“O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-lhe a substância proteica e a roupagem; nós as criaremos. 

“Nossa liberdade e sua sustentação cotidiana têm cor de sangue e estão repletas de sacrifícios. 

"O caminho é longo e em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos. 

“Nós nos forjaremos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica. 

“A personalidade desempenha o papel de mobilização e de direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e enquanto não se afasta do caminho." 

Ou então, para concluir:

"Deixa-me dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

História da Astronomia - O Céu dos Antigos.

 

 O céu de nossos antepassados era baixo. Quando os antigos astrônomos sumérios, chineses e coreanos subiam os degraus de seus zigurates quadrados, construídos de pedras, para estudar as estrelas, tinham razões para supor que assim conseguiam uma visão melhor, não porque - como hoje diríamos - se tinham elevado um pouco acima da poeira e da turbulência do ar, mas porque estavam bastante mais próximos das estrelas. Os egípcios consideravam o céu como uma espécie de teto de uma tenda, apoiado em montanhas que marcavam os quatro cantos da terra, e como estas não eram assim tão altas, também os céus não o seriam, presumidamente: as gigantescas constelações egípcias pairavam próximas da humanidade, tão próximas quanto a mãe que se inclinava para beijar o filho adormecido. O Sol grego estava tão perto que Ícaro alcançou uma altitude de apenas alguns mil metros quando o calor derreteu a cera de suas asas, fazendo com que o pobre rapaz mergulhasse no indiferente Egeu. Nem estavam as estrelas gregas significativamente mais distantes, quando Faetonte perdeu o controle do carro do Sol, este desviou-se e projetou-se em direção às estrelas, com a mesma rapidez com que um carro descontrolado atinge um poste, e em seguida, ricocheteou de volta a Terra (torando os etíopes e deixando-os negros, nesse percurso).

 

Mas se os nossos antepassados tinham pouca idéia da profundidade,  estavam razoavelmente bem familiarizados com os movimentos bidimensionais das estrelas e planetas no céu, e foi estudando tais movimento que dos antigos sumérios, e provavelmente antes, houve estudiosos do céu noturno dispostos a dedicar as horas da noite a solitária tarefa de, apertando os olhos e esticando o pescoço, fazer observações servindo-se de pedras alinhadas ou de quadrantes de madeira, ou simplesmente de seus dedos, pacientemente registrando o que viam. Era um trabalho insano. Por que se dedicavam a ele?

        

Um dos motivos pode ter sido o desejo inato, misterioso mas persistente, de expressar um sentimento da participação humana na vida das estrelas. Como observou Copérnico, a reverência pelas estrelas é tão profunda na consciência humana que está impregnada na própria linguagem. “O que é mais nobre do que os céus", escreveu ele, “os céus que contêm todas as coisas nobres? Seu próprio nome deixa isso claro: Caelum (céus) indicando aquilo que belamente esculpido; e Mundus (mundo), pureza e elegância.”[1]Até mesmo Sócrates, embora pessoalmente indiferente à astronomia, admitia que a alma ”é purificada e reanimada”' pelo estudo do céu.

 

Havia também incentivos práticos. A navegação, entre outros: os marinheiros podiam calcular a latitude medindo a elevação da estrela polar, e podiam dizer o tempo pelas posições das estrelas, vantagens tão apreciadas que a gente do mar as codificou na poesia e na mitologia, muito antes do advento da palavra escrita. Quando Homero diz que a Ursa nunca se banha, está transmitindo o conhecimento do marinheiro, de que a Ursa Maior, a constelação que encerra a Grande Carroça, é circumpolar em latitudes mediterrâneas - isto é, nunca fica abaixo da linha do horizonte do mar.

 

Outro motivo prático era a contagem do tempo. Os fazendeiros da Antigüidade aprenderam a fazer do céu em movimento um relógio e um calendário, e consultavam almanaques riscados na madeira ou na pedra em busca de orientação astronômica para decidir quando plantar e colher. Hesíodo, um dos primeiros poetas cujas palavras foram escritas, surge da era pré-alfabetizada com muitos conselhos sobre como ler o céu em busca de indicações sobre as estações:

 

Quando a grande Órion subir, manda teus escravos

Joeirar o grau sagrado de Deméter

Sobre a ventosa, gasta eira. . .

Dá então aos escravos um descanso; desatrela tua junta.

Mas quando Orión e Sírio entrarem

No meio do céu, e Arcturo ver

Os róseos dedos da Aurora, então Perseu, colhe

As vinhas encacheadas, e leva para casa a colheita. .

Quando a grande Órion baixar, é chegado o tempo

De arar; e assim morre o ano velho.[2]

 

Os caçadores-coletores que antecederam os lavradores também usavam o céu como calendário. Como um índio Cahuilla, da Califórnia, disse a um pesquisador, na década de 1920:

 

Os antigos costumavam estudar as estrelas muito cuidadosamente e, dessa maneira, podiam dizer quando começava cada estação. Reuniam-se na casa cerimonial e discutiam sobre a época em que certas estrelas deviam aparecer e com frequência faziam apostas sobre isso. Era um assunto muito importante, pois o aparecimento de certas estrelas dependia a estação do plantio. Depois de várias noites de observação cuidadosa, quando uma determinada estrela finalmente aparecia, os antigos corriam para o ar livre, gritavam e com freqüência dançavam. Na primavera, essa alegria era particularmente acentuada, pois... podiam agora encontrar certas plantas nas montanhas. Nunca iam às montanhas sem ter visto antes uma determinada estrela, pois sabiam que antes disso não encontrariam alimentos ali.[3]

 

Stonehenge é uma das milhares das máquinas antigas de contar o tempo, e cujas partes móveis estavam todas no céu. A Grande Pirâmide de Guizé estava alinhada de acordo com a estrela polar, e era possível determinar as estações pela sua sombra. Os maias da velha Yucatán inscreveram em monumentos de pedra as fórmulas úteis para a previsão de eclipses solares e para o nascer helíaco de Vênus (isto é, seu aparecimento a oeste do Sol, como a "estrela da manhã"). As rodas de pedra medicinais dos índios Plains, da América do Norte, indicavam pontos de aparecimento das estrelas mais brilhantes, informando os seus arquitetos nômades quando era chegado o momento de migrar para as pastagens sazonais. Os 28 postes dos albergues medicinais dos Cheyennes e dos Sioux teriam sido usados para marcar os dias do mês lunar. “Ao levantar o abrigo da dança do sol", disse o Alce Negro, sacerdote dos Oglala Sioux, “estamos realmente reproduzindo uma semelhança do universo."[4]

 

         O poder político desempenhou, ao que se presume, um papel nos primeiros esforços para identificar os movimentos periódicos no céu, na medida em que aquilo que se pode prever, pode-se controlar. O conhecimento do calendário deu aos sacerdotes uma vantagem na impiedosa política dos Maias, e Cristóvão Colombo conseguiu assustar os índios de Hispaniola a ponto de forçá-los a fornecer comida à sua tripulação faminta advertindo que se não o fizessem, a Lua “nasceria irada e inflamada para mostrar o mal que Deus lhes infligiria". Fernando, o filho de Colombo, escreveu em seu diário para a noite de 29 de fevereiro de 1504:

 

Ao nascer da Lua o eclipse começou, e quanto mais ela subia mais se intensificava o eclipse. Os índios o observaram e ficaram tão assustados que com gritos e lamentos acorreram aos navios, vindos de todos os lados, transportando abastecimento, e imploraram ao Almirante, por todos os meios, que intercedesse por eles junto a Deus, para que não os submetesse aos efeitos de sua ira, e prometeram, no futuro, dar-lhe prontamente tudo o que precisasse.. . A partir de então, eles sempre tiveram o cuidado de nos abastecer de tudo o que era necessário, louvando sempre o Deus dos cristãos.[5]

 

Mas quanto mais os astrônomos pré-históricos se inteiravam dos movimentos periódicos que viam no céu noturno, mais complicados estes se mostravam. Uma coisa era aprender as periodicidades simples que a Lua completa um circuito das constelações zodiacais em 28 dias, o Sol em 365 dias e 1/4, os planetas visíveis (do grego planétes, errante) em intervalos que iam de 88 dias para o ligeiro Mercúrio, até 29 anos e meio para o pesado Saturno. Outra coisa, muito mais desorientadora, era aprender que os planetas ocasionalmente param em seu caminho e voltam para trás - movimento retrógrado - e que suas órbitas se inclinam umas em relação às outras, como pratos mal empilhados, e que o pólo celeste norte da Terra realiza uma precessão, oscilando num círculo lento no céu, que leva 26.000 anos para ser concluído.[6]

 

O problema de decifrar essas complexidades, não reconhecidas na época, estava no fato de ser a Terra, da qual vemos os planetas, também um planeta em movimento. É porque a Terra faz uma órbita em volta do Sol, enquanto gira sobre seu eixo inclinado, que há uma seqüência dia-noite do tempo, na qual qualquer estrela nasce e se põe numa determinada latitude. O movimento de precessão da Terra modifica lentamente a posição do pólo celeste norte. O movi- mento retrógrado que disso resulta é conseqüência da combinação dos movi- mentos da Terra e dos outros planetas. Ultrapassamos os planetas exteriores como um corredor que vai por uma pista interna, e isso faz com que cada um deles, primeiro, pareça avançar, depois hesitar e recuar pelo céu, à medida que a Terra passa por eles. Além disso, como as suas órbitas são inclinadas em relação umas às outras, os planetas fazem curvas para o norte e o sul, bem como para leste e oeste.

 

Essas complicações, embora possam ter parecido uma maldição, constituíram, a longo prazo, uma bênção para o desenvolvimento da cosmologia, o estudo do universo em geral. Se os movimentos celestes fossem simples, teria sido possível explicá-los exclusivamente em termos das histórias simples e poéticas que caracterizaram as cosmologias antigas. Em lugar disso, mostraram-se tão complicados e sutis que não foi possível prevê-los com exatidão sem conhecer a realidade física do como e onde o Sol, a Lua e os planetas realmente se moviam, no espaço tridimensional real. A verdade é bela, mas a beleza não é necessariamente verdade: por mais agradável que possa ter sido para os sumérios imaginar que as estrelas e planetas nadavam de volta do oeste para o leste todos os dias, através de um rio subterrâneo sob uma Terra chata, essa concepção era totalmente inútil quando se tratava de determinar quando Marte entraria num movimento retrógrado, ou a Lua ocultaria Júpiter.

 

Em conseqüência, cresceu lentamente a idéia de que um modelo adequado do universo devia ser não só internamente coerente, como uma canção ou um poema, mas devia também fazer previsões exatas que pudessem ser comprova- das pela observação. A ascendência dessa tese marcou o começo do fim de nossa infância cosmológica. Como outros ritos de passagem para a maturidade, porém, o esforço para construir um modelo preciso do universo foi uma empresa Agridoce que exigiu trabalho árduo, incerteza e poucas satisfações. De início, foram poucos os que a ela se dedicaram.


Um destes foi Eudóxio. Ele entra nas páginas da História num dia de verão, aproximadamente no ano 385 a C., quando desceu do barco que vinha de sua cidade natal de Cnido, na Ásia Menor, deixou sua escassa bagagem numa estalagem barata perto do cais e caminhou sete quilômetros pela poeirenta estrada até a Academia de Platão, nos arredores a noroeste de Atenas. A Academia ficava num beco local, no bosque de oliveiras, os "bosques da academia" originais, perto de Colona, o santuário do cego Édipo, onde as folhas dos álamos-brancos se transformavam num prateado brilhante ao vento, e os rouxinóis cantavam dia e noite. O mentor de Platão, Sócrates, tinha escolhido os bosques da Academia, que até mesmo Aristófanes, o caluniador de Sócrates, descreveu ternamente como “perfumados de madressilvas e de um contentamento tranqüilo”.[7]

 

A própria beleza era o principal objeto de estudo na academia, embora uma beleza mais abstrata. Que só os geômetras entrem aqui, dizia a inscrição no alto da porta, e era grande o encantamento geral pela elegância das formas geométricas. A geometria (geometria, “a medição da Terra") tinha começado como coisa prática, como o método empregado pelos egípcios nas medições anuais pelas quais se restabeleciam os limites das fazendas inundadas pelo Nilo. Mas nas mãos de Platão e seus discípulos a geometria foi elevada a uma condição próxima à da teologia. Para Platão, as formas geométricas abstratas eram o universo, e os objetos físicos, apenas sua sombra imperfeita. Como interessava-se mais pela perfeição do que pela imperfeição, Platão escreveu encômios às estrelas, mas raramente saiu à noite para estudá-las.

 

Apoiava sua idéia com uma imponente autoridade pessoal. Platão não era apenas inteligente, mas também rico - um aristocrata, um dos “guardiães” da sociedade grega, descendendo, pelo lado materno, de Sólon, o Legislador, e pelo paterno, dos primeiros reis de Atenas - e também, fisicamente, impressionante. Platão, significa “de ombros largos", apelido que lhe fora dado pelo seu mestre de ginástica, quando, ainda rapaz, lutou nos Jogos Ístmicos. Eudóxio, como podemos supor, ficou devidamente impressionado. Era, porém, um geômetra independente - viria a colaborar no lançamento das bases da geometria euclidiana e a definir o “retângulo dourado", uma elegante proporção que se evidencia por toda parte, desde o Partenon até os quadros de Mondrian - e, ao contrário de Platão, combinava os seus raciocínios matemáticos abstratos com uma paixão pelos fatos físicos. Quando viajou ao Egito (peregrinação à sé do conhecimento geométrico que muitos pensadores gregos empreenderam, embora Platão pareça não ter encontrado nunca tempo para ela), Eudóxio não só realizou pesquisas em geometria, como aplicou às estrelas, construindo um observatório astronômico às margens do Nilo, e ali mapeando o céu. O observatório, embora primitivo, evidenciava sua convicção de que uma teoria do universo devia atender às exigências não só da contemplação intemporal, mas também da explicação do incessante movimento do céu.

 

Quando o amadurecido Eudóxio voltou à Academia, já então como erudito renomado, com seu séquito próprio de alunos, começou a trabalhar num modelo do cosmos que devia ser ao mesmo tempo platonicamente agradável e empiricamente defensável. Nesse modelo, o universo era composto de esferas concêntricas que cercavam a Terra, também uma esfera [8]. Isso teria satisfeito Platão, que considerava a esfera como "o mais perfeito" dos sólidos geométricos, por ter o mínimo possível de superfície em relação ao volume de espaço que encerra. Mas o universo de Eudóxio devia enquadrar-se melhor nos fenômenos observados, e essa aspiração exigia complexidade. Ao cosmos esférico simples, proposto por Parmênides um século antes, Eudóxio acrescentou mais esferas. As novas esferas influenciavam os movimentos do Sol, Lua e planetas, alterando suas orbitas e velocidades, e, ajustando os seus índices de rotação e a inclinação de seus eixos, Eudoxio verificou que podia explicar, mais ou menos, o movimento retrogrado e outras complexidades do movimento celeste. Foram necessárias 27 esferas para isso. Era mais do que Platão teria gostado, mas correspondia um pouco mais de perto aos dados do que os modelos anteriores. A hegemonia da beleza pura, abstrata, tinha começado o seu lento recuo ante o ataque obstinado, insistente, do mundo material.

 

Em última análise, porém, até mesmo um cosmos complexo como o de Eudoxio mostrava-se inadequado. Os dados eram constantemente aperfeiçoados - com a conquista da Babilônia por Alexandre, o Grande, em 330 a.C., os gregos tiveram acesso aos seus registros astronômicos, que antes não estavam ao seu alcance, ao mesmo tempo que continuavam a fazer observações próprias, pelo menos intermitentes - e o modelo de Eudóxio não explicava as sutilezas reveladas por essas informações mais amplas e refinadas. Começou assim um ciclo, semelhante ao da fênix, da ciência, da cosmologia, em que as teorias, por mais grandiosas que fossem, dependiam de dados empíricos que têm o poder de destruí-las.

 

O passo seguinte coube, para melhor ou para pior, a Aristóteles. Rotineiramente descrito nos livros didáticos como uma alternativa empirista a Platão, Aristóteles foi, na realidade, dedicado a observação. Diz-se, por exemplo, que ele teria passado sua lua-de-mel recolhendo espécimes da vida marinha. Mas era também amigo da exploração e não tolerava ambigüidades, qualidades que não são salutares na ciência. Filho de um médico, herdou o hábito que têm os médicos de se mostrarem confiantes e tranqüilizantes ante todas as perguntas ansiosas dos pacientes. Se pressionado, essa tendência o tornava crédulo (as mulheres, disse ele, têm menos dentes do que os homens) e o levava a extremos de categorização  ociosa, como ao observar que: "os animais devem ser divididos em três partes, uma pela qual o alimento é ingerido, outra pela qual o excremento é expelido e uma terceira sendo a região intermediária entre essas duas."[9] Aristóteles escreveu e ensinou lógica, retórica, poesia, ética, economia, política, física, metafisica, história natural, anatomia, fisiologia e condições climáticas, e o seu pensamento sobre muitos desses assuntos foi sutil como o orvalho, mas não era homem a cujos lábios acorresse com facilidade a frase "Eu não sei", Tudo o que sua mente tocava, ao mesmo tempo esclarecia e anestesiava.

 

Ninguém gosta, realmente, de um homem que sabe tudo, e Aristóteles tornou-se a primeira vítima conhecida da política acadêmica. Embora fosse aluno da Academia e seu professor mais célebre, e claramente o melhor qualificado para substituir Platão como seu diretor, foi duas vezes preterido. Tomou, então a única atitude satisfatória para um homem da sua estatura, e foi lecionar em outra instituição. Como não havia nenhuma outra instituição acadêmica, foi obrigado a criá-la, e assim teve origem o Liceu.

 

Quando chegou a sua vez de manifestar-se sobre a estrutura do universo, Aristóteles baseou seu modelo nas esferas celestes de Eudóxio, a quem estimara na Academia pelo seu caráter moderado, bem como pelos seus feitos ímpares  na astronomia. Como seu assistente de pesquisa no projeto de cosmologia, Aristóteles escolheu o astrônomo Calipo, natural da terra adotiva de Eudóxio, Cízico. Juntos, Aristóteles e Calipo produziram um modelo - consistente, simétrico, expansivo e belo de ser visto - que se inclui entre as mais excitantes das muitas cosmogonias errôneas da história. Incluído no livro De Caelo (Dos céus) de Aristóteles, iria seduzir, e induzir ao erro, o mundo durante vários séculos. Não há necessidade de nos determos em seus detalhes: consistiam principalmente de esferas superpostas e de ajustes em seus parâmetros, com o resultado de que o universo passava a ter 55 esferas brilhantes e translúcidas. Além da esfera mais exterior. Aristóteles sustentava, com base em estranha epistemologia, que nada podia existir, nem mesmo o espaço. No centro ficava uma Terra imóvel, o brilhante diadema do modelo e seu erro fatal.

 

Frente a uma inevitável disparidade entre a teoria e a observação, os cosmólogos que trabalhavam a partir da hipótese geocêntrica não tinham outra escolha senão continuar a tornar seus modelos cada vez mais complicados. E assim a cosmologia foi levada a um labirinto de epiciclos e excentricidades no qual permaneceria enredada durante mais de mil anos. O virtuoso dessa exploração foi Cláudio Ptolomeu.

 

Nasceu ele no século II, em Prolemaida, sobre o Nilo, e o financiamento de seus estudos astronômicos foi feito pela dinastia dos Ptolomeus, através do museu de Alexandria. Quaisquer que fossem as suas deficiências - e muitas se evidenciaram, inclusive provas de que ele falsificou alguns dados -, foi um astrônomo prático, e não um teórico de gabinete. Mapeou as estrelas a partir de um observatório em Canopo, a cidade com o nome de uma estrela, situada a cerca de 25 km a leste de Alexandria, e conhecia a refração e a extinção atmosféricas e muitas outras tribulações que perseguem o observador cuidadoso. Deu à sua principal obra cosmológica o nome de Sintaxe Matemática, significando isso “a composição matemática", mas ela nos chegou com o nome de Almagesto, ou seja, “o maior” em árabe. O que ele fez de maneira esplêndida foi prever os movimentos do Sol, da Lua e das estrelas com mais precisão do que seus antecessores.

 

Os epiciclos e os excêntricos pelos quais Ptolomeu buscou conciliar a teoria e a observação tinham sido introduzidos pelo geômetra Apolônio de Perga e aperfeiçoados pelo astrônomo Hiparco. Os epiciclos eram pequenas órbitas circulares impostas sobre as órbitas dos planetas: se um planeta, para Aristóteles, circulava a terra como um elefante preso a uma corda, o mesmo planeta, para Ptolomeu, descrevia a órbita de uma pedra atada a uma corda, lançada pelo homem que montava o elefante. Os excêntricos melhoraram a adequação entre a página escrita e o céu noturno, transferindo o centro presuntivo das várias es- feras celestes para um lado do centro do universo. A esses movimentos Ptolomeu acrescentou outro, o movimento circular realizado pelo centro das esferas planetárias. O poste da corda do elefante entrava agora, ele próprio, em órbita em torno do centro do universo, arrastando todo o sistema de esferas e epiciclos de um lado para outro, de modo que os planetas podiam aproximar-se e afastar-se da Terra.

 

O sistema era deselegante - perdera quase toda a simetria que tornava as esferas celestes do agrado da estética de Aristóteles - mas funcionava, mais ou menos. Girando e zumbindo, o universo ptolomaico podia prever quase todos os movimentos planetários observados - e quando não o previa, Ptolomeu manipulava os dados para que se ajustassem. Em sua elaboração, e nas elaborações que astrônomos posteriores foram obrigados a fazer, o sistema fazia previsões suficientemente exatas para manter sua reputação como “o maior" guia dos movimentos celestes, desde a época de Ptolomeu até o Renascimento.

 

O preço pago pelos seguidores de Ptolomeu pela precisão adquirida por seu modelo foi esquecer a pretensão de que ele representasse a realidade física. O sistema ptolomaico passou a ser considerado não como um modelo mecânico do universo, mas como uma ficção matemática útil. Todas aquelas rodas dentro de rodas não existiam realmente no espaço - tal como, por exemplo, as linhas geométricas de limites registrados na repartição alexandrina de terras não representavam linhas reais traçadas nas propriedades inundadas ao longo do Nilo. Como observou Proclo, um neoplatônico do século V: “Esses círculos existem apenas no pensamento... Explicam os movimentos naturais por meio de coisas que não tem existência na natureza.”[10] O próprio Ptolomeu achava que as complexidades do modelo simplesmente refletiam as encontradas no céu; se a solução foi deselegante, foi deselegante, disse ele, também o era o problema:

 

Enquanto nos limitarmos a esses modelos que montamos, julgaremos a composição e sucessão dos vários movimentos desajeitada. Organizá-los de modo que cada movimento possa ser realizado livremente, não parece possível. Mas quando estudamos o que acontece no céu, não somos perturbados por essa mistura de movimentos.[11]

 

 O objetivo da teoria não era, portanto ,retratar o mecanismo real do universo, mas simplesmente, “salvar as aparências”. Muito já se ridicularizou essa visão e grande parte de tal ridículo as expensas de Ptolomeu, mas a ciência de hoje recorre com freqüência a abstrações intangíveis. O "continuum espaço-tempo" descrito pela teoria geral da relatividade é um desses conceitos, e também o é o número quântico chamado de "isospin",e não obstante, ambos tiveram muito êxito na previsão e na explicação de acontecimentos observados no mundo. Devemos dizer, em defesa de Ptolomeu, que ele pelo menos teve a coragem de admitir as limitações de sua teoria. A frase “salvar as aparências" é de Platāo, e sua ascensão, através do universo ptolomaico, foi uma acentuada vitória do idealismo platônico e uma derrota da dedução empírica. Platão compartilhava com seu mestre Sócrates de um profundo ceticismo sobre a capacidade que tem a mente humana de compreender a natureza pelo estudo dos objetos e acontecimentos. Como Sócrates disse ao seu amigo Fedro enquanto caminhavam às margens do Ilisso: “ Ainda não posso 'conhecer-me a mim mesmo', como manda a inscrição em Delfos, e enquanto perdurar essa ignorância, parece-me absurdo indagar sobre matérias estranhas."[12] Entre essas "matérias estranhas" estava a estrutura do universo. Aristóteles amava Platão, que não parece ter retribuído a devoção com a mesma intensidade: suas discordâncias iam além da filosofia e chegavam aos de- talhes do estilo. Platão vestia-se com simplicidade, ao passo que Aristóteles usava roupas elegantes, anéis de ouro e penteados caros. Aristóteles gostava dos livros; Platão desconfiava dos homens que eram demasiado literários.[13] Com um toque da ironia que sobreviveu séculos, Platão chamava Aristóteles de “o cérebro". 

 

         Aristóteles, apesar de todas as suas tendências empíricas, nunca perdeu o apego à beleza das imortais formas geométricas de Platāo. Seu universo de esferas lúcidas foi um tipo de céu na terra, onde seu espírito, e o de Platāo, podiam viver juntos em paz. Nem a ciência, nem a filosofia, conseguiram ainda ter êxito onde Aristóteles falhou. Em conseqüência, sua sombra, e a de Platāo, continuam a disputa, nas páginas das revistas filosóficas e científicas, e em milhares de laboratórios e salas de aula. Quando os filósofos da ciência lutam hoje com problemas como saber se as partículas subatômicas se comportam de maneira determinista, ou se o espaço-tempo de dez dimensões representa a verdadeira arquitetura do antigo universo ou se é apenas um recurso de interpretação, estão, num certo sentido, ainda tentando celebrar a paz entre o homem de ombros largos e seu brilhante e ousado discípulo,"o cérebro".                                                        



[1] -. Copérnico, Das revoluções. P 510.

[2] - Hesíodo, Os trabalhos e os dias, p. 78.

[3] - In Williamson, 1984,p. 297.

[4] - Ibid, p. 210.

[5]  - In Morison, 1963,p.362.

[6] - Esse fenômeno, chamado de precessão dos equinócios, era conhecido dos gregos antigos e pode ter sido descoberto antes deles. Georgio de Santillana, em seu livro Hamlet's Mill, o identifica com o mito antigo de Amlodhi (mais tarde Hamlet), dono de um gigantesco moinho de sal que foi para o fundo do mar ao ser transportado de navio. O moinho continuou a trabalhar, criando um redemoinho que lentamente faz girar os céus. Quer descreva ou não a precessão, o mito do moinho de Hamlet certamente perdura; eu o ouvi pela primeira vez aos 9 anos de idade, num pátio de escola rural na Flórida, de uma menina que explicava por que o oceano é salgado.

[7] - In Wycherley, 1978,p.222.

[8] - Na época de Eudóxio ,todos os gregos cultos admitiam ser a Terra esférica, à base de evidencias como a forma da sombra que ela projeta sobre a Lua, durante os eclipses lunares.

[9] - Aristóteles, Da juventude,2,14, in Barros, 1984.

[10] - In Duhem, 1969, p. 19.

[11] - Ibid.,p. 17.

[12] - Platão, Fedro, 230a, in Hamilton and Cairns, ed., 1969.

[13] - No Fedro, de Platāo, Sócrates conta uma velha história de como o lendário rei Tamos, do Egito, recusou a oferta do deus Teute de ensinar aos seus súditos a escrever. “O que descobriste é uma receita não para a memória, mas para a lembrança" diz o rei Tamos. "E não é a verdadeira sabedoria que ofereces aos teus discípulos, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois dizendo-lhes muitas coisas sem ensina-las, vais dar-lhes a aparência de saberem muito, quando em sua maioria eles nada sabem, e como homens imbuídos, não de sabedoria, mas da pretensão de sabedoria, serão um aborrecimento conhecimento. Esta continua sendo uma das denúncias mais proféticas dos perigos da alfabetização, jamais feitas – embora, é claro, seja graças à palavra escrita que dela temos conhecimento.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Alfredo Rocco e as Origens do Fascismo.



Passaremos agora a tentar destrinchar as confusas influências filosóficas do fascismo e do corporativismo através da figura de Alfredo Rocco, principal ideólogo do fascismo em sua gestação e o intelectual do regime mais influente fora da Itália e em especial no Brasil . Ele ficou conhecido como o principal jurista do fascismo.

Rocco nasceu em Nápoles em 1875 e lecionou direito em diversas universidades italianas ao longo do tempo. A partir de 1920 foi diretor do jornal L’idea nazionale, órgão da Associação Nacionalista.  Desde antes da existência do fascismo, Rocco era um radical defensor do nacionalismo italiano, que rapidamente percebeu que o caminho para defender sua visão se dava através da aliança entre os partidos nacionalistas e o fascismo. Ele foi um dos principais defensores desta união de resultados. Foi também político respeitado, sendo eleito deputado em 1921 e tornando-se presidente da Câmara em 1924. Entre 1925 e 1932 foi o Ministro da Justiça de Mussolini, criando o Código Criminal italiano (conhecido como código Rocco e estudado nas universidades ao redor do mundo).  Em 1927, junto com Carlo Costamagna e Giuseppe Bottai, redigiu a Carta Del Lavoro; consta que teria sido Rocco o corretor final do texto.  Foi reitor da Universidade de Roma entre 1932 e 1935.
Mas o que mais nos interessa é que Rocco em sua juventude havia se identificado com o marxismo por um lado e de outro lado com o positivismo. Em sua obra pode-se discernir essa influência que se não é sempre explicita, foi defendida abertamente por ele nos seus anos de militância nacionalista:

El Estado proyectado por Rocco se concretaba, ya desde los primeros años de militancia nacionalista, en «una armadura de acero (...): una versión contemporánea, pero acorde con una línea de pensamiento jurídico más precisa, con la «sociedad orgánica» sansimoniana o con el Système de politique positive de Auguste Comte» (81). Semejante visión positivista de la sociedad, combinada con los elementos de la tradición política autoritaria, le induce a negar la categoría de los derechos subjetivos como atribución de libertades individuales, y a considerarla una condición de vida y progreso fisiológico de la organización social. CAMPIONE , p314.

No campo do direito seu referencial teórico era o juspositivismo alemão (que apesar de não ser idêntico ao positivismo filosófico de Comte, foi desenvolvido e inspirado por juristas positivistas). Segundo Fabio Gentile, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará e especialista em fascismo:

No nacionalismo conservador do jurista italiano, o ponto de partida é a crítica ao liberalismo, formulada através de alguns elementos fundamentais que se entrelaçam entre si: o problema da relação autoridade-liberdade e o problema das massas amorfas produzidas pela modernização. O horizonte teórico de referência para Rocco é a escola jurídica alemã do positivismo legal(...). Enquanto na tradição jurídica liberal a ideia de autolimitação do Estado é a base legal sobre a qual fundamenta-se a liberdade do cidadão no Estado de Direito, Rocco opera uma verdadeira torção do positivismo jurídico(...) (GENTILE, 2014, p. 89.)


As ideias de Rocco são sintetizadas em um texto seu que tinha a pretensão de ser o texto base do fascismo. Nele se discute história, filosofia, sistemas sociais e referencias que conformariam: A doutrina política do fascismo .  

Segundo Gentile é através da figura de Rocco que se conciliam o idealismo (respeito às tradições, mímese do Estado Romano )  e positivismo (importância da prática, Estado forte e centralizado, conciliação de classes) conformando as bases do nacionalismo italiano que se transformaria no fascismo. Rocco definia esta relação entre idealismo e prática com um mote poético: Ação e Sentimento. Neste texto podemos encontrar, subentendidas ou explicitadas, diversas influências filosóficas de Rocco e consequentemente do fascismo, ainda que o próprio autor negue estas influências ao afirmar a originalidade e nacionalidade do pensamento fascista.

Boa parte da lógica de Rocco se baseia na oposição a outros regimes e formas de Estado. Após uma longa crítica ao liberalismo e a democracia Rocco define o que seria para ele o Estado Moderno:

Portanto o Estado, se existe para todos, deve ser governado por todos, e não por uma pequena minoria: Se o Estado existe para o povo, a soberania deve residir no povo: se todos os indivíduos têm o direito de governar o Estado, a liberdade não é mais suficiente; igualdade deve ser adicionada; e se a soberania é garantida pelo povo, o povo deve deter toda a soberania e não somente parte dela. O poder de examinar e restringir o governo não é suficiente. O povo deve ser o governo .(Rocco, 1925)
Salta aos olhos a semelhança deste discurso com a famosa frase de Osvaldo Aranha pronunciada dias depois da Revolução de 1930: Até aqui o povo obedecia ao governo; agora, é o governo que obedece ao povo. (in Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1930).  A curta distância temporal entre o escrito de Rocco e a declaração de Osvaldo Aranha remete também ao espírito do tempo: as agruras da primeira guerra mundial, as crises econômicas e a disparidade social estavam na ordem do dia, gerando respostas semelhantes em lugares distintos. O texto segue analisando as diferenças e semelhanças entre fascismo, liberalismo, democracia e socialismo até chegar em um ponto surpreendente para nós:

O grande desenvolvimento industrial e a existência de uma enorme massa de trabalhadores, ainda maltratados e numa condição de semiservitude, empurram o problema do trabalho violentamente para frente. As desigualdades sociais, possivelmente toleráveis num regime de industrialização doméstica tornam-se insuportáveis depois da revolução industrial. Como consequência temos o estado das coisas que em meados do século passado demonstravam-se ser tanto cruéis quanto ameaçadoras. Era portanto natural que a seguinte questão fosse levantada: “Se o Estado é criado para o bem geral de seus cidadãos, considerados separadamente, como ele pode tolerar um sistema econômico que divide sua população em uma pequena minoria de exploradores, os capitalistas, de um lado, e uma imensa multidão de explorados, os trabalhadores, do outro lado?” Não! O Estado precisa intervir e criar uma organização econômica diferente e menos injusta, abolindo a propriedade privada, assumindo o controle direto de toda a produção, e organizando de um modo que os produtos do trabalho sejam distribuídos somente entre aqueles que os criaram, a classe trabalhadora .(Rocco, 1925).

Um leitor desatento pode achar que as frases acimas formam parte de um discurso de Lenin. Para além da mímese do socialismo, o fascismo copiava parte da retórica e das diretrizes do movimento comunista internacional e do socialismo utópico. Também se nota a influência positivista na ideia de conciliação de classes sintetizada no conceito de corporativismo. Esta passagem, por exemplo, certamente contemplaria Getúlio Vargas e os positivistas brasileiros. Afinal uma doutrina que defende a incorporação do proletariado na sociedade, uma distribuição econômica mais justa, mas sem a luta de classes marxista, é justamente o que eles defendiam. Eis uma das semelhanças entre positivismo e fascismo e uma das inspirações que o segundo tirou do primeiro:

Consequentemente encontramos o Socialismo, com sua nova organização econômica da sociedade, abolindo a propriedade privada do Capital e dos instrumentos e meios de produção, socializando o produto, suprimindo o lucro extra do capital, e direcionando para a classe trabalhadora todo o resultado do processo produtivo. É óbvio que o Socialismo contém e supera a Democracia do mesmo jeito que a Democracia contém e supera o Liberalismo, sendo mais avançado e mais desenvolvido dentro do mesmo conceito fundamental. Socialismo por sua vez gera a ainda mais extrema doutrina do Bolchevismo que exige violentamente a repressão dos detentores do capital, a ditadura do proletariado, como meio para uma organização econômica da sociedade mais justa e para o resgate das classes trabalhadoras da exploração capitalista .
(Rocco, 1925)

quinta-feira, 21 de maio de 2020

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O que é "Materialismo Histórico"?



     Nomes estranhos e ininteligíveis. Conceitos complexos que afastam as pessoas da leitura filosófica. Mas não é tão difícil. Basta um pouco de paciência e leitura. Assim, nesta edição vamos falar de um pensador muito citado ultimamente, mas pouco compreendido e, menos ainda, lido. Karl Marx, ele mesmo, o "vilão" da vez.

Dentre muitos conceitos chave para compreender a obra de Karl Marx, um dos mais essenciais é o chamado "Materialismo Histórico". O que é isso afinal? Vamos entender.

Em síntese, Marx considerou que em determinado grau de desenvolvimento das Forças Produtivas, elas tendem a corresponder determinadas Relações de Produção, por exemplo, Relações de Produção de tipo feudal correspondem a Forças Produtivas de tipo Agrícola. No entanto, considera Marx, as Relações de Produção se mantêm enquanto favorecem as Forças Produtivas e são destruídas quando se convertem em obstáculos ou empecilhos para elas. E como as Forças Produtivas, em conexão com o progresso técnico, se desenvolvem mais rapidamente que as Relações de Produção, as quais, exprimindo-se nas relações de propriedade, tendem a permanecer estáticas, segue-se periodicamente uma fase de atrito ou de oposição dialética entre os dois elementos, que gera uma época de revolução social, onde as novas Forças Produtivas são sempre encarnadas por uma classe em ascensão, enquanto as velhas são sempre encarnadas por uma classe dominante em declínio.

Ele observa como exemplo, a Revolução Burguesa que deu fim ao mundo feudal e Aristocrático. Neste momento da história a Relação de Produção mantida pela exploração da produção pelos senhores feudais e aristocratas proprietários de terras e dos meios de produção permaneceram estáticas na sua "nobreza", enquanto a Força Produtiva representada pelo burguês, detentor do Know How de produção e comércio, se desenvolveu nesta Relação de Produção de modo a permitir a capitalização da burguesia ascendo-a à dominância da referida Relação de Produção, tomando o domínio feudal e aristocrada e gerando uma nova Força de Produção, qual seja, o proletário.

E mais, este conjunto de Relações de Produção constitui uma estrutura econômica na sociedade que se torna a base de uma superestrutura jurídica e política correspondente às formas sociais de consciência.

      Em outras palavras, o modo de produção da vida material condiciona todo o processo da vida social, política, jurídica e espiritual.

É evidente que aqui não se pretende resenhar sobre o assunto, muito menos criticá-lo, o que é impossível numa simples coluna com intuito jornalístico, mas permitir ao leitor um contato com o conceito sintetizado do instituto, o qual, basicamente se resume neste movimento evolutivo e dialético das sociedades humanas baseado nas relações entre a força produtiva e os grupos que dominam esta força e que vão nortear toda a atividade daquela sociedade e suas instituições políticas e jurídicas.

          Recomenda-se para aprofundamento no tema, a leitura da obra "A Ideologia Alemã" de Karl Marx.

sábado, 27 de maio de 2017

Origem e Formação Da Língua Latina no Império Romano - As Línguas Descendentes do Latim: românicas ou neolatinas

Desta vez o texto será histórico, ao contrário dos outros na linha filosófica. Considerando estudos linguísticos que venho realizando, o desenvolvimento deste artigo será, além de curioso, importante para compreensão de textos filosóficos nesta linha, de linguagem, que virão posteriormente. 

Aqui será traçado um histórico do nascimento do Latim, concomitante ao desenvolvimento do Império Romano, e o nascimento das línguas neolatinas, concomitante ao declínio deste império. Vamos lá.

A Língua Latina foi a língua civil da República e do Império Romano, foi a língua que sistematizada e estilizada serviu de meio pelo qual os grandes poetas e escritores cantaram seus heróis e suas conquistas, foi a língua que na fala do povo foi levada a um tão grande Império e serviu de mãe na formação de tantas outras: as neolatinas ou românicas.

O Latim é uma língua de origem indo-européia (língua-mãe de todos os falares Indo-europeus, língua essa reconstituída fonética e gramaticalmente por filólogos do séc. XIX por ser uma língua sem registros linguísticos). O povo, que falava o Indo-europeu foi denominado “Ária”, eram nômades, agricultores e pastores; e devem ter vivido provavelmente na parte central da Europa por volta do ano 5000 a.C. As migrações desse povo levaram parte deles (os oscos, umbros e latinos) a se alocar na Península Itálica e a prosseguiram suas atividades pastoris e agrícolas.

A Língua Latina se desenvolveu a partir da fala dessa pequena e humilde comunidade camponesa, a tribo dos latinos, que no início de seu crescimento habitou o Latium - região central da Península Itálica às margens do Rio Tibre. A evolução do Latim foi única e surpreendente: de uma fala simples e rude até tornar-se o meio de comunicação linguística da maioria de seus habitantes, isto é, foi a língua oficial e administrativa de um grande e poderoso Império. A marcha que leva esta língua ao triunfo acompanha a marcha das próprias legiões de soldados romanos no seu desenvolvimento de conquistas territoriais.

Entre as várias cidades do Latium, Roma, fundada em 753 a.C., pouco a pouco foi crescendo e assumindo posição de destaque sobre as demais. Segundo dados lendários e históricos, a cidade fora construída por Rômulo em local estategicamente privilegiado da Península Itálica, pois além de estar próxima ao Rio Tibre, também a sua posição no alto da colina fazia com que escapasse à insalubridade dos vales pantanosos; por outro lado, estava ao centro de uma junção de várias vias naturais, o que facilitava o comércio das diversas regiões e gerava o contato cultural entre os vários povos vizinhos. Por isso, tornara-se ambicionada e sofrendo várias invasões. Esses fatores condicionaram o povo romano a serem, desde o início, guerreiros militares e defensores de seu território. O mesmo acontecendo com a língua latina, que a princípio era um entre os vários dialetos da região, porém em poucos séculos assume supremacia entre os demais: o osco falado bem ao sul de Roma; o umbro falado a nordeste – ambos bastante parecidos com o Latim e oriundos também da mesma protolíngua, o indo-europeu, como foi dito acima. Outro dialeto também existente na Península Itálica era o falisco, língua dos falérios e da qual há bem poucos testemunhos, ao norte de Roma, cercada de falares etruscos. Esses, por sua vez, eram falados ao norte e não formavam uma língua aparentada ao Latim ou aos demais dialetos, pois não há comprovação de ter uma origem indo-européia. O povo etrusco era possuidor de grandes cidades, cuja superioridade cultural e por vezes política ameaçou por muito tempo o crescimento e até mesmo a existência de Roma, ao se infiltrar como comerciantes, mas logo iniciar seu domínio político, tornando-se Monarcas de Roma.  Linguisticamente, a valiosa contribuição etrusca foi “o alfabeto” que eles haviam recebido dos gregos e dos fenícios e usavam para escrever sua língua. O uso desse alfabeto permite que as inscrições etruscas hoje encontradas possam ser lidas, mas não necessariamente entendidas. Esse povo legou outras grandes contribuições aos romanos como a tradição de construção de estradas (daí o dito popular: “Todos os caminhos levam a Roma”), de grandes edificações de muralhas de proteção da cidade, como também da construção de rede de água esgoto e saneamento. Apesar das contribuições, o domínio político etrusco (regime Monárquico) gerou insatisfações nos romanos e esses iniciam um trabalho que será sedimentado no decorrer da formação romana: o aperfeiçoamento da arte militar que contribui para um caráter rígido e prático dos romanos. Em 509 a.C., esses últimos já militarmente estruturados, fazem sua primeira conquista, quando destronam o rei etrusco Tarquínio Soberbo, expulsam o povo etrusco de seu território, retomam o poder e mudam a forma de regime político de Monarquia para República.

Uma vez que prosseguem os ataques dos povos vizinhos ao território romano, esses prosseguem com a luta de defesa de seu território. Cada vez se aprimorando mais e mais na arte militar se vêm capazes, em poucos séculos, não só de se defender, mas também de conquistar. Vencidos os etruscos e também o povo montanhês dos samnitas, sua dominação se faz sobre os umbros, os oscos, os sabélicos, até que os romanos chegam ao sul da Península Itálica e se defrontam com os gregos que habitavam essa região. Essa conquista é de fundamental importância para o mundo romano e ocidental, pois sendo o grego um povo de cultura muito mais elevada que o romano, mesmo perdendo a guerra passa a ser o modelo de imitação em todos os setores culturais de Roma e do grande Império, que logo depois se forma.

Assim, a conquista territorial do sul da Península Itálica, concluída em 272 a.C. com a tomada de Tarento, é o primeiro contato com a cultura do povo grego da Magna Grécia. Nessa, os romanos levam para Roma, entre os escravos de guerra, o jovem Andronicus. Esse domínio contribuiu para o início do conhecimento da cultura grega pelos romanos e o despertar da valorização da arte, principalmente a literatura, até então não ambicionada pelo povo latino, quando Andronicus, sendo liberto e exercendo o papel de mestre dos filhos dos romanos, traduz para o Latim a obra épica do grande poeta grego Homero – A Odisséia. Essa tradução, em 250 a.C., marca o início da Literatura Latina e o desenvolvimento da língua dos romanos. 

O exército romano, ao expandir suas conquistas ainda mais para o sul, trava as três grandes guerras, chamadas Púnicas, com os Cartagineses, povo mercador e que detinham a hegemonia comercial do Mar Mediterrâneo. A consequência de vitórias romanas nessas guerras é a ampliação territorial de Roma com a conquista das ilhas de Sardenha, Córsega e Sicília, bem como parte da Península Ibérica e o norte da África (nome dado pelos romanos em referência ao vento sul Africus). O final das três guerras com a derrota e destruição da grande potência marítima de Cartago por Roma, contribuiu para que Roma dominasse toda Europa Mediterrânea e o Mar Mediterrâneo fosse considerado por eles como MARE NOSTRUM INTERNUM.

Em meio às Guerras Púnicas, Roma estende seus domínios a leste para a Grécia e a Macedônia, no séc. II a.C. Este é um novo momento de enriquecimento não só territorial, mas cultural, pois os fundamentos filosóficos, filológicos e gramaticais são trazidos da Grécia neste intercâmbio de novos estudiosos.  

O Latim até então dito arcaico, começa a ser estudado, normatizado e estilizado para uso dos poetas e prosadores latinos e gregos. O romano, ao perceber a supremacia cultural dos gregos, busca nestas fontes o conhecimento de todas as artes, principalmente a literária e também o de gramática. Eles “bebem” nesta fonte mais pura, se aprimoram até se tornarem originais e do séc. I a.C. ao séc. I d.C. atingem o período áureo de sua literatura. 

Nesse momento, a língua utilizada pela classe culta já se aprimorara, estilizara e se diferenciara daquela que era falada pelo povo ou a chamada classe plebéia, a composta de mercadores, marinheiros, soldados, campesinos etc. Essa segunda modalidade de Latim tendia cada dia mais a simplificar-se para atender às necessidades de comunicação de uma classe progressivamente mais heterogênea em decorrência da expansão do Império Romano. Com as conquistas territoriais, os soldados, mercadores e outros iam até as províncias dominadas e posteriormente parte dos povos dessas regiões vinham para Roma.  O Latim levado às novas regiões era o dito “vulgar”, ou seja, a modalidade apenas falada, sem conhecimento de normas gramaticais e que tinha cada vez mais a tendência a ‘simplificações’ linguísticas, para facilitar a compreensão daqueles que no momento tomavam conhecimento desse falar e necessitavam se comunicar e travar todo tipo de transação comercial.

As conquistas territoriais romanas contribuem não só para o acréscimo de territórios, mas Roma ganha diferentes valores culturais e linguísticos no contacto com os novos povos conquistados, principalmente os gregos. A classe aristocrática tende a se distanciar ao máximo da classe plebéia e a fazer uso da língua dentro de padrões mais elegantes,  mais  cuidados, enquanto que em  oposição, era mais próprio da plebe um  uso  linguístico  mais  desleixado, indisciplinado. A essa diferenciação de uso da língua latina dá-se o nome, nos estudos romanísticos, de latim clássico e de latim vulgar. Essas não eram duas línguas, mas duas modalidades da mesma língua e não uma consequente cronologicamente da outra, mas sim, existiram simultânea e paralelamente; também conviveram num mesmo espaço de tempo e lugar. Socialmente, a grande diferença entre essas variedades do latim é que refletem duas culturas diferenciadas que conviveram  no grande Império Romano: de  um  lado,  a  de  uma  sociedade  fechada, conservadora e aristocrática,  cujo  primeiro  núcleo  seria  constituído pelo patriciado;  de outro,  a  de  uma  classe  social heterogênea e  aberta  a todas  influências,  sempre  acrescida  de elementos exteriores - a plebe, constituída por uma população rural que se estabelecera na cidade principalmente  para  servir  de  contingente  militar  para  as conquistas; por  estrangeiros  imigrantes  que  procuravam melhores  condições  de  vida  e  trabalho  em  Roma; por habitantes  das  províncias  recém conquistadas  pelos romanos  e  que  se  interessavam  pela nova  vida  que Roma podia lhes oferecer; e  ainda  por escravos libertos.

          O latim escrito (literarius) deste período já alcançara um nível superior ao atestado no século antecedente e atinge no séc. I a.C. até o I d. c. o seu período áureo com grandes escritores, poetas, historiadores e dramaturgos  como Catulo, Virgílio, Horácio, Cícero, Lucrécio, Ovídio, Júlio César, Sêneca entre tantos outros. Todos os gêneros literários foram desenvolvidos: poesia lírica, satírica, épica, pastoril, didática, erótica; a retórica, a oratória, a filosofia, a historiografia, o romance.

         Este período de glória romana é marcado também pela substituição do regime republicano pelo regime político do Império, em 27a.C., com as honras militares de Augustus, Princips e Imperator a César Otávio. Não só na política, Augusto enobreceu Roma por meio de grande incentivo à artes e favorecendo aos poetas de seu tempo (com auxílio de Mecenas). Augusto “recebe uma cidade de pedras e a transforma em uma cidade de mámore”, governa com rigor mas também com a PAX ROMANA.

O controle administrativo e político de cada uma das províncias conquistadas foi facilitado pela sólida rede rodoviária construída entre elas e Roma. A estradas, o tráfego e o comércio decorrentes delas, a ocupação militar das províncias e sua colonização, a administração e o Direito romanos contribuíram para o fluir de centenas de milhares de pessoas para o centro do Império, Roma. Em decorrência desses fatores, em toda parte, com exceção das regiões orientais, a Língua Latina se impôs, suplantando e desalojando as línguas locais. Processo linguístico esse que requer períodos de tempo diferenciados e por isso, em contrapartida, a língua dominadora (Latim) também recebe influências e empréstimos das línguas dos povos vencidos. A essas influências da língua dos povos vencidos na língua dominadora chamamos de substratos linguísticos.

As províncias romanizadas à oeste do Império e às margens do Danúbio passaram a falar então predominantemente o Latim; a leste, o Grego permaneceu dominante, ainda mais que os romanos o consideraram como segunda língua oficial para o lado oriental de seu Império.

Após a morte de César Otávio Augusto, novos imperadores governam de forma não a contribuir para a glória romana, mas inicia-se um período de tirania, despotismo, perseguição e morte aos seguidores do Cristianismo, saque aos cofres públicos, desrespeito aos cidadãos e aos valores éticos e morais que até então foram tão respeitados pelos romanos. Os Imperadores Claudianos (Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), governantes entre 14 e 68 da nossa era, obscurecem a glória do Império Romano, emudecem pela censura o canto glorioso de seus poetas quando marram os fatos históricos reais e projetam a decadência do Império Romano.  

No século II de nossa era, a vastidão territorial do Império romano provoca dificuldades administrativas e a consequente descentralização do poder, não mais saindo apenas de Roma todas as decisões. Formas administrativas foram se diversificando: o Imperador Caracala em 212 concedia igualdade de direitos a todos os súditos do Império; o Imperador Galieno, de 260 a 268, decretou ampla autonomia militar às regiões mais afastadas; houve em 286 a repartição administrativa do Império em quatro regiões (tetrarquia) pelo Imperador Diocleciano; e finalmente em 395, em decorrência dessa última decisão, o desmembramento em Império Romano do Oriente, com a capital em Constantinopla, e Império Romano do Ocidente, com a capital Roma.

A falta de controle administrativo contribuiu para a pouca resistência militar sobre os invasores bárbaros (povos não romanizados, principalmente germânicos) que tendiam, em números cada vez maior, às infiltrações e conquistas nos territórios romanos. Esses povos bárbaros de origem germânica habitavam as regiões norte e nordeste da Europa e noroeste da Ásia, na época do Império Romano. Viveram em relativa harmonia com os romanos até os séculos IV e V da nossa era. Chegaram até a realizar comércio com os romanos, nas fronteiras e muitos germânicos eram contratados para integrarem o poderoso exército romano. Os romanos, assim como os gregos, usavam a palavra “bárbaros” para todos aqueles que habitavam fora das fronteiras do império e que não falavam a língua oficial dos romanos (ou a dos gregos). A convivência entre esses povos e os romanos durou até o século IV, quando uma horda de hunos pressionou os outros povos bárbaros nas fronteiras do Império Romano. Neste século e no seguinte, o que se viu foi uma invasão, muitas vezes violenta, que acabou por derrubar o Império Romano do Ocidente. Além da chegada dos hunos, podemos citar outros motivos que ocasionaram a invasão dos bárbaros: a busca de riquezas, de solos férteis e de climas agradáveis.

Os principais povos bárbaros germânicos que invadiram o Império Romano foram:

-Alanos: originários do nordeste do Cáucaso; entraram e ocuparam a região da Hispânia  e o norte da África no séc. IV e V;
-Anglos e Saxões: originários do norte da atual Alemanha e leste da Holanda. Penetraram e colonizaram as ilhas Britânicas ou antiga Bretanha no séc. V;
-Francos: estabeleceram-se na região da atual França e fundaram o Reino Franco;
-Lombardos: invadiram a região norte da Península Itálica;
-Burgúndios: estabeleceram no sudoeste da França;
-Visigodos: instalaram-se na região da Gália, Itália e Península Ibérica;
-Suevos: invadiram e habitaram a Península Ibérica;
-Vãndalos: estabeleceram-se na Península Ibérica e no norte da África;
-Ostrogodos: invadiram a região da atual Itália e depuseram o último imperador romano, Rômulo Augústulo (nome depreciativo de Rômulo Augusto: pequeno Augusto). A data de deposição de Rômulo Augústulo pelo bárbaro Odoacro, 4 de setembro de 476, na cidade de Ravena é tradicionalmente conhecida como o fim do Império Romano do Ocidente, isto é, o fim da Idade Antiga e o começo da Idade Média. 

Assim, essas incursões das tribos bárbaras provocaram a queda do Império do Ocidente no séc. V (476) quando os ostrogodos depuseram o Imperador Rômulo Augústulo. Este é um marco importante cronologicamente como fim do Império Romano do Ocidente e, portanto, limite de uma língua oficial dominante e que então começa a receber influências de outras línguas que não a substituem, mas exercem novas influências em cada período que com ela tem novo contato com novas línguas (e que chamamos de influências de superestrato). Com o declínio da autoridade central de Roma, diminui também a comunicação entre a regiões do Império e há um desenvolvimento linguístico cada vez mais divergente em cada região. Consideramos então que há uma dialetação do Latim Vulgar levado e implantado nestas regiões pelo povo romano.

Chamamos de romanço ou romance a esses falares que se desenvolveram a partir do Latim em cada região diferente, recebendo, por vários séculos, influências linguísticas diferenciadas até se sistematizarem, criarem uma literatura própria e se oficializarem em línguas nacionais. Temos hoje várias línguas que assim se formaram e que são um prolongamento do Latim de Roma, portanto são suas línguas-filhas.  As chamadas línguas neolatinas ou românicas são as seguintes: Português, Italiano, Castelhano ou Espanhol, Catalão, Provençal, Rético, Romeno, Sardo, Galego e Francês. O Dalmático foi também uma língua neolatina, sendo que hoje está extinta.